Postado por: Marcelo Jabour Seção: Constitucional, ICMS, Tributação – 29/10/2013 às 17h24
O ICMS dos Estados e do Distrito Federal pertence à categoria dos impostos plurifásicos e alcança todas as etapas de circulação de mercadorias ou da prestação de serviços de transporte e comunicação.
Tributos dessa natureza podem ser cumulativos – não admitem que o valor cobrado em cada etapa seja deduzido do valor cobrado na etapa antecedente – ou não cumulativos – garantem a compensação do que for devido em cada etapa do circuito econômico com o montante cobrado antes – e a opção do constituinte brasileiro baseou-se na experiência mundial que condena os tributos cumulativos, que causam desequilíbrios à livre concorrência, não contribuem para fomentar a economia, incidem em cascata e afetam a neutralidade almejada.
A Carta Republicana positivou [1] o princípio da não cumulatividade para o ICMS e delimitou as duas únicas hipóteses para o seu afastamento: a isenção ou a não incidência acarretam a anulação do crédito relativo às operações anteriores. Ao explicitar os raros casos de cumulatividade admitidas, cuidou também de reduzir os seus efeitos negativos, ao excepcionar os exportadores dessa regra e admitir outras hipóteses de manutenção dos créditos, nos termos da lei (complementar ou ordinária).
A doutrina nacional reconhece, nessa esteira, que o contribuinte faz jus ao que se convencionou chamar de crédito financeiro, vedada qualquer restrição infraconstitucional em razão da destinação dos bens adquiridos para o exercício da sua atividade econômica.
Após a promulgação da Constituição, a primeira norma a ofender a não cumulativade estabeleceu três graves restrições ao princípio: a) negou o crédito relacionado à entrada de bens destinados ao consumo ou à integração no ativo imobilizado do estabelecimento, b) limitou o crédito decorrente da aquisição do serviço de comunicação e c) vedou o crédito das mercadorias utilizadas no processo industrial que não fossem consumidas ou não integrassem o produto na condição de elemento indispensável a sua composição (artigo 33 do Convênio nº 66, de 1988).
Em 1996, o país promoveu profundas reformas para, tardiamente, exonerar os tributos incidentes nas exportações de bens e serviços. Neste contexto, foi editada a Lei Complementar nº 87, de 1996, a Lei Kandir, que finalmente cumpriu o papel constitucional de dispor sobre o imposto, revogou o convênio 66 e pôs fim, após oito anos, ao regime provisório do ICMS.
O legítimo instrumento normativo, em total sintonia com a Constituição Federal, reconheceu o direito ao crédito amplo e irrestrito e, para afastar qualquer dúvida em relação a essa interpretação, mencionou explicitamente todas as hipóteses geradoras de créditos, inclusive aquelas que haviam sido tolhidas anteriormente (artigo 19 e 20 da LC 87).
Entretanto, a LC 87 foi alterada pela Lei Complementar nº 102, de 2001, e, ao adotar uma técnica bastante peculiar – prorrogou os efeitos do artigo que consagrou o amplo direito ao crédito – estabeleceu novas restrições ao crédito do ICMS (artigo 33 da LC 87), nomeadamente: parcelou o crédito do ativo em 48 meses e restringiu o direito ao crédito da aquisição da energia elétrica e do serviço de comunicação para alguns setores da economia. Estas restrições, salvo nova prorrogação, deverão vigorar até o ano de 2020 [2].
Não bastassem essas violações ao texto constitucional, os Fiscos estaduais sempre procuram inovar. São bastante conhecidas as tentativas de “conceituar” bem alheio à atividade do estabelecimento (para negar o crédito do ativo imobilizado); impedir o crédito de mercadorias oriundas dos Estados que praticam guerra fiscal; e não reconhecer todos os insumos utilizados no processo industrial (definições restritivas ao conceito de produtos intermediários).
A mais recente tentativa de reduzir o alcance da não cumulatividade foi gestada no Estado de Minas Gerais, por meio da publicação da Instrução Normativa nº 3, de 2013, que, em síntese, almeja negar o direito ao crédito de um importante insumo utilizado pelos contribuintes na atualidade: a energia elétrica.
Os argumentos utilizados pela fiscalização baseiam-se nas seguintes premissas: a energia elétrica somente gera crédito nas hipóteses estabelecidas pela LC 87 (por exemplo: industrialização, exportação). Logo, nos processos não industriais o crédito da energia consumida encontra-se adiado para 2020. Processos não industriais são aqueles que geram produtos primários não tributados pelo IPI, resultantes das atividades relacionadas à agricultura, pecuária, produção florestal, pesca, aquicultura e extração.
A norma – que não é uma lei e pretende ter aplicação retroativa em virtude de “seu caráter interpretativo” – colide com todas as orientações formais dadas ao contribuinte e com os atos praticados pelo ente tributante ao longo dos anos, além, é claro, de embasar-se em argumentos sofistas. Não compete ao Estado definir o que são processos industriais e não industriais, com o único interesse de desautorizar créditos legítimos do contribuinte.
Rogamos pela imediata revogação dessa instrução normativa, para que seja restabelecida a segurança jurídica e restaurada a confiança que deve pautar as relações Fisco-contribuinte.
[1] Artigo 155, § 2º, incisos I e II da CF 1988.
[2] Vide Leis Complementares nº 114, de 2002, nº 122, de 2006, e nº 138, de 2010.
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