https://valor.globo.com/legislacao/coluna – 28/09/2023.
Por Marcio Crejonias (*)
Tratar as sociedades veículos como as reais investidoras significa obliterar a realidade econômica de que foram elas empregadas como um “meio” para a aquisição do investimento.
Frequentemente, pessoas jurídicas, sejam nacionais, sejam estrangeiras, realizam investimentos, adquirindo empresas no país, por intermédio de holdings, capitalizadas por elas especificamente para esse desiderato. É dizer, em vez de adquirirem diretamente as empresas, essas investidoras o fazem de modo indireto, socorrendo-se para tanto dessas interpostas pessoas jurídicas, de cujo capital social são as controladoras.
A essas interpostas pessoas se dá o nome de “sociedades veículos”, porquanto empregadas como “meio” para a aquisição de investimentos, no interesse econômico exclusivo de suas controladoras.
Note-se que, não raro, essas aquisições trianguladas, ultimadas por meio de sociedades veículos, resultam no pagamento de ágio, fundamentado na expectativa de rentabilidade futura do investimento. Como regra geral, essa despesa de ágio é indedutível para efeito de apuração do Imposto de Renda (IRPJ).
No entanto, o legislador excepciona essa proibição, permitindo a dedução do ágio da base de cálculo do IRPJ, na hipótese em que ocorre a confusão patrimonial entre o investidor e a investida, por incorporação, fusão ou cisão.
A ratio dessa previsão excepcional de dedutibilidade do ágio se consubstancia na presunção de que a confusão patrimonial do investidor com a investida conduz à perda do investimento, criando assim a conveniência de compensar o investidor pela frustração quanto à rentabilidade futura motivadora do ágio.
À vista dessa legislação e com base no racional que a inspirou, convém perquirir se é dedutível a despesa de ágio quando a pessoa jurídica investida absorve, por incorporação, fusão ou cisão, a sociedade veículo que a adquiriu formalmente no interesse econômico da controladora de seu capital social.
Forçoso reconhecer que nesse contexto o ágio não deve ser considerado dedutível, vez que não se vislumbra aí a perda do investimento de que se originou o ágio, pressuposto material justificador da incidência da lei autorizativa da dedução.
Afinal, não se pode perder de vista que antes da extinção da interposta pessoa jurídica (sociedade veículo), o investimento formalmente adquirido por esta era exercido de fato por sua controladora, a real investidora.
Todavia, após a extinção da interposta pessoa jurídica, absorvida que foi pela sociedade investida, o controle que a investidora detinha nesta última, até então formalmente indireto, convola-se em direto, sendo exercitável sem intermediação.
Em suma, o investimento que nasceu indireto para a investidora real, posto que esta o adquiriu por meio de sociedade veículo sob seu controle, passa a ser direto no exato momento em que sobrevém a absorção da sociedade veículo pela empresa investida, decorrendo daí a conclusão inescapável de que nesse cenário não há perda do investimento.
Antes o contrário, dado que nesse contexto o investimento e os resultados financeiros expectados dele não só continuam a existir, como o investimento passa a ser titularizado diretamente pela real investidora, sem intermediário.
Em realidade, o que se extingui aqui é somente a interposta pessoa colocada entre a real investidora e o investimento, como corolário da incorporação de seu capital social pela sociedade investida, negócio este ultimado com a finalidade de assegurar a dedução do ágio, na esteira da pressuposição falsa de que a sociedade veículo incorporada era a real investidora.
Note-se que a interpretação tributária das operações societárias não deve ater-se à formalidade jurídica de que estas se revestem, ao arrepio da realidade econômica que lhes é subjacente.
Nesse diapasão, o voto do ministro do STF Luiz Fux no julgamento do RE 651.703/PR, segundo o qual “nos dias atuais, ao contrário, a utilização do critério econômico como decorrência do aspecto teleológico não deriva de uma preocupação arrecadatória, mas de uma apreciação axiológica baseada nos Valores da Igualdade e da Solidariedade, dos quais derivam os Princípios da Igualdade, Capacidade Contributiva e Solidariedade. Deve-se reconhecer a interação entre o Direito e a Economia, em substituição ao formalismo jurídico. A interpretação é simultaneamente jurídico-econômica”.
Daí por que age bem o Fisco quando nega às sociedades veículos a condição de real investidora, interditando o direito à amortização fiscal do ágio pago na aquisição do investimento na hipótese em que a confusão patrimonial se opera entre essas sociedades veículos e as investidas.
Afinal, tratar as sociedades veículos como as reais investidoras significa obliterar a realidade econômica de que foram elas empregadas como um “meio” para a aquisição do investimento, no interesse exclusivo de suas controladoras, estas sim as reais investidoras.
A interpretação finalística da legislação, à luz da qual se considera a motivação econômica dos preceitos normativos cotejando-a com as operações empresariais que lhes estão sujeitas, consiste em medida acertada, sendo inclusive mandatório observá-la, a teor do artigo 5º do Decreto-Lei 4.657/42.
Finalizando, prestigiar a tese de que a confusão patrimonial entre a sociedade veículo e a sociedade investida é o bastante para permitir a dedução do ágio implica passar ao largo da verdade factual de que essa operação não envolve o real investidor por trás da sociedade veículo, resultando daí a violação do sentido teleológico da lei tributária, para o qual é fundamental atentar sempre.
(*) Marcio Crejonias é procurador da Fazenda Nacional com atuação na Divisão de Acompanhamento Especial na Procuradoria-Regional da Fazenda Nacional na 3ª Região
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