https://valor.globo.com/legislacao/coluna – 13/09/2023.
Por Luís Alexandre Barbosa e Fernando Bittencourt.
Sem mera coincidência, a Receita Federal aplica dois entendimentos que lhe favorecem em duplicidade.
Em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), enfim, pacificou seu entendimento sobre a tributação das operações de licença de uso de software, ao definir que tais operações são tributáveis pelo ISS e não pelo ICMS. Independentemente de o software ser classificado como padronizado (prateleira) ou por encomenda, seja via download ou ainda na modalidade software as a service (SaaS).
Até então, a Receita Federal possuía entendimento pacificado pela Solução de Consulta Cosit nº 316/20173 no sentido de que a remuneração pela licença de uso de software caracteriza exploração de direito e, via de consequência, não deveria ser tributada pelo PIS/Cofins-Importação, cuja incidência se restringe às operações envolvendo bens e serviços.
Ocorre que, por ter o STF se manifestado pela tributação da licença de uso de software pelo ISS, discutiu-se sobre a possível utilização desse precedente para classificar as remessas para remuneração dessas licenças também como “serviço”, o que atrairia a incidência do PIS/Cofins-Importação. Essas discussões ganharam ainda mais força quando da publicação da Solução de Consulta Cosit nº 36/23, que definiu que se aplicaria às operações de licença de uso de software o percentual de presunção no lucro presumido aplicável a “prestação de serviços” – de 32%.
Poucos meses depois, com a publicação da Solução de Consulta Cosit nº 75/23, a Receita reiterou seu entendimento histórico de que a remuneração pela licença de uso de software caracteriza-se como “royalties”, apontando que “a mera inclusão na lista de serviços sujeita ao ISS, contudo, não afasta a natureza dos contratos de licença de direito de uso de programas de computação (software)”.
Nesse contexto, ao reconhecer que o pagamento por licença de uso de software caracteriza remuneração pela exploração de direitos autorais, a Receita Federal parecia sinalizar que, ao julgar as ADIs 1954 e 659, o STF “relativizou” apenas a hipótese de incidência do ISS para abranger as operações de licença de uso de software e não o “conceito” de serviço ou mesmo a natureza das operações com software, para fins tributários.
No entanto, poucos dias após a publicação da Solução de Consulta Cosit nº 75/23, foi publicada a Solução de Consulta Cosit nº 107/23, por meio da qual, apesar de confirmar a natureza de direitos autorais da exploração do software, apontou-se que referidas operações deveriam ser tributadas pelo PIS/Cofins-Importação por envolverem uma “obrigação de fazer”.
De acordo com o referido entendimento, a licença de uso de software estaria sujeita à incidência do IRRF, por caracterizar remuneração pela exploração de direito autoral e também pelo PIS/Cofins- Importação, por se tratar de uma operação mista ou complexa envolvendo além da “obrigação de dar” uma “obrigação de fazer”.
Essa interpretação, todavia, cria uma inegável cacofonia tributária. De um lado, a Cosit fundamenta a incidência do IRRF com base na premissa de que a licença de direito de uso do software se classifica como exploração de direito autoral. Do outro lado, diametralmente oposto, esse mesmo órgão justifica que a licença de uso do software caracterizaria um “serviço” para fins de tributação pelo PIS/Cofins-Importação.
Ao tratar as remessas de software como royalties para fins de Imposto de Renda, a Cosit restringe a aplicação das regras de não retenção do IRRF relativamente a remessas destinadas a países com os quais o Brasil possui acordo para evitar a dupla tributação, o que seria possível caso a licença de uso de software fosse entendida como um “serviço”, tal qual o foi para fins de PIS/Cofins-Importação.
Como se vê, as autoridades da Receita acabaram por dar a uma mesma operação, duas naturezas jurídicas distintas e conflitantes. Sem mera coincidência, a Receita aplica dois entendimentos que lhe favorecem em duplicidade, seja porque impossibilita o creditamento do IRRF ao tratar a remuneração pela licença de uso do software como royalties, seja porque classifica o mesmo software como “serviço” na pretensão de tributar as remessas também pelo PIS/Cofins- Importação.
Essa incongruência deve gerar relevante contencioso tributário não apenas em operações internas, em relação a possibilidade de desconto de créditos de PIS/Cofins- Importação com intangíveis, mas também questionamentos internacionais sobre os reflexos dessas conflitantes interpretações sobre os tratados internacionais em que o Brasil é signatário.
Ao menos enquanto não houver uma definição quanto a efetiva natureza e o tratamento tributário do software pela Receita, considerando a vinculação do entendimento Cosit às autoridades fiscais, o entendimento da Solução de Consulta Cosit nº 107/23 somente poderá ser aplicado a partir de 13 de junho (serviço). Relativamente aos fatos geradores passados, deverá ser mantida a interpretação firmada na Solução de Consulta Cosit nº 316/2017, ratificado pela Solução de Divergência nº 2/2019, no sentido da não incidência do PIS/Cofins-Importação nas remessas para remuneração de licença de uso de software.
Luís Alexandre Barbosa e Fernando Bittencourt são sócios do LBMF Sociedade de Advogados
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