https://valor.globo.com/legislacao – 26/05/2023.
Por Marcio Crejonias (*).
A interpretação, defendida pela Fazenda Nacional, de que a Lei nº 12.973/2014, quando proibiu a dedução fiscal do ágio interno, não inovou a ordem jurídica.
No contexto do artigo 20 do Decreto-lei 1.598/1977, o ágio consistia no sobrepreço pago pela aquisição de uma participação societária em relação ao seu valor de patrimônio líquido. Nos termos dos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/1997, a despesa de ágio, quando fundamentada na expectativa de rentabilidade futura, é passível de dedução da base de cálculo do IRPJ, desde que haja confusão patrimonial entre o investidor, adquirente da participação societária, e o investido, em consequência de eventos societários como incorporação, fusão ou cisão.
Esse ágio, não raro, é produzido à esteira de operações de aquisição societária envolvendo pessoas jurídicas integrantes do mesmo grupo econômico, submetidas ao mesmo controlador. A esse ágio a doutrina tributária atribui o nome de ágio interno.
Até a superveniência da Lei nº 12.973/2014, que proibiu expressamente a dedução do ágio interno para fins de IRPJ, muitos contribuintes se arvoravam no direito de realizar essa dedução tributária quando ocorrente a hipótese a que se referem os aludidos artigos 7º e 8º.
Contudo, não há como se olvidar de que, muito antes do advento da Lei nº 12.973/2014, já vigiam normas contábeis proibindo a contabilização do ágio interno (vide o item 120 da Resolução nº 1.110/2007 do CFC, o item 24.2 do Ofício Circular CVM/SNC/SEP nº 01/2006 e o item 50 da OCPC nº 02/2008).
O fundamento para tanto sempre residiu no artificialismo econômico intrínseco ao ágio interno, o qual nunca se traduziu numa verdadeira despesa. Prova disso é que o dispêndio financeiro incorrido na aquisição da participação societária, do qual comumente se origina o ágio interno, não provoca desfalque de recursos no grupo econômico ao qual pertence o investidor.
Isso porque, no tocante ao ágio interno, os recursos empregados na aquisição da participação societária, em que pese saiam da empresa investidora em direção à empresa investida, continuam na esfera de disponibilidade do ente controlador de ambas, decorrendo daí a conclusão de que inexiste real despesa que se possa associar ao ágio interno, sendo este fabricado, em bases artificiais, a partir de negócios jurídicos ultimados pelo controlador do grupo econômico consigo mesmo, ainda que para tanto instrumentalize suas controladas, numa prática empresarial de claro abuso de direito em prejuízo do Fisco.
Metaforicamente falando, é como se o controlador tirasse o dinheiro de um bolso (representando aqui a sociedade investidora por ele controlada) e o colocasse num outro bolso de sua própria calça (representando aqui a sociedade investida igualmente sob o seu controle societário). Essa ilustração é poderosa para escancarar que na gênese do ágio interno o grupo econômico contribuinte faz a mágica de criar uma despesa desvinculada de um gasto real que lhe dê suporte. Noutras palavras, tem-se aqui a inusitada criação de uma despesa sem ônus, da qual esse contribuinte, seu artífice, se aproveita fiscalmente ao deduzi-la da base de cálculo do IRPJ, granjeando para si uma economia tributária absolutamente iníqua.
A despeito de todas essas evidências em favor da constatação de que o chamado ágio interno não possui substrato econômico de verdadeira despesa, muitos contribuintes insistem em defender a sua dedutibilidade fiscal no período anterior à entrada em vigor da Lei nº 12.973/2014.
A ideia subjacente a essa defesa jurídica é a de que, se antes da Lei nº 12.973/2014 a dedução fiscal do ágio interno não era vedada, é de se concluir que até então aos contribuintes era lícito deduzi-lo, quando configurada a situação legal autorizativa para tal.
Tal raciocínio, todavia, é descabido, pois encerra um contrassenso lógico insuperável. Afinal, não há como se cogitar da amortização fiscal do ágio interno, quando se toma em conta que antes da Lei nº 12.973/2014 os preceitos contábeis vigentes, assentados no postulado basilar da contabilidade de prevalência da essência econômica sobre a forma, já proibiam a sua contabilização como tal.
Nesse ponto, estando os contribuintes, em suas demonstrações financeiras, legalmente obrigados a observar as regras contábeis vigentes (artigo 177 da Lei nº 6.404/76; artigo 3º da Lei nº 11.638/2007), é ilógica a conclusão de que, sendo o ágio interno um falso ágio à luz da contabilidade, aos contribuintes se possa reconhecer, mesmo assim, o direito de amortizá-lo fiscalmente, só porque por um período a legislação foi silente em proibi-lo expressamente e a doutrina tributária sempre o nominou como ágio, malgrado ágio não o seja, em termos econômicos.
A propósito, não é o nome o que define a natureza jurídica das coisas, mas sim a sua real substância (“verba non mutant substantiam rei”), sendo que o direito tributário não pode ser interpretado de modo insular, apartado da realidade econômica que o circunda, de cujo registro fidedigno a contabilidade se ocupa.
Em suma, é inescapável a interpretação, defendida pela Fazenda Nacional, de que a Lei nº 12.973/2014, quando proibiu a dedução fiscal do ágio interno, não inovou a ordem jurídica, limitando-se a dar explicitude a uma vedação que já era implícita no sistema normativo de regência da matéria, sob pena de se condescender com a amortização fiscal de um ágio que, ante o seu flagrante artificialismo econômico, nunca representou uma verdadeira despesa de ágio, tanto que proibido pelas regras contábeis antes apontadas, de cujo cumprimento, aliás, os contribuintes jamais deveriam se evadir.
(*) Marcio Crejonias é procurador da Fazenda Nacional com atuação na Divisão de Acompanhamento Especial (DIAES) da Procuradoria Regional da Fazenda Nacional da 3ª Região
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