Postado por: Edison Carlos Fernandes Seção: Tributação – Valor Econômico – 12/05/2014 às 15h05.
Um amigo de longa data, o único a ir para a área de belas artes, gosta de fazer alterações em ditados populares, tornando-os mais divertidos e realistas. Por exemplo, ele costuma dizer: “Diga-me com quem andas que eu te direi se vou contigo”.
Recentemente, em um rústico cartaz pregado na rua li a nova redação de um velho ditado popular, com o mesmo espírito que inspira o meu amigo: “Seria trágico se não fosse comigo”.
Essa nova redação dá margem a duas leituras diametralmente opostas. Primeira: como sei lidar muito bem com os problemas que aparecem em minha vida, o que normalmente seria trágico, ao acontecer comigo não será. Ou, segunda: para que um problema não se torne trágico para mim, eu o resolvo, da maneira que for necessária.
Esta última leitura deve ter sido aquela utilizada pelo governo federal ao elaborar a nova regulamentação, na Medida Provisória n° 627, dos tributos incidentes sobre os lucros de subsidiárias brasileiras no exterior – a chamada tributação das coligadas ou das multinacionais brasileiras. Dada a sua complexidade, diversos pontos poderiam ser e efetivamente são discutidos pelos interessados, inclusive por meio da imprensa especializada ou não; porém, em razão da limitação deste espaço, farei consideração apenas a dois pontos que me parecem mais sensíveis e fundamentais.
Prevalência dos tratados internacionais sobre a lei interna. Os operadores do direito, muitas vezes, são criticados porque distorcem as palavras a fim de manter a legalidade do seu discurso mesmo diante de uma conduta ilegal. Nesse sentido, a MP 627 propõe a seguinte alquimia: o que as multinacionais brasileiras reconhecem nas suas demonstrações contábeis não é o lucro gerado por suas subsidiárias no exterior, mas, sim, um lucro próprio, reflexo daquele apenas, gerado pela empresa sediada no Brasil, não a que está localizada no exterior.
Confuso? Claro que é, porque é sem sentido. Não há como desvencilhar o aumento de patrimônio da empresa brasileira com o lucro gerado por sua subsidiária situada no exterior.
Essa ginástica semântica tem o objetivo de sustentar a inaplicabilidade dos tratados internacionais em matéria de tributação da renda. Não sendo “lucro estrangeiro”, não existe a possibilidade de se buscar respaldo em um acordo internacional.
Quando, no limite, esse argumento fica insustentável, a Receita Federal do Brasil afirma que os tratados internacionais não devem prevalecer sobre a lei interna. Dessa forma, ainda que se cogitasse a observância dos acordos internacionais em matéria de imposto sobre a renda, ele não seria aplicado de maneira contrária à nova regulamentação legal do assunto (MP 627).
Dessa forma, a argumentação a favor da nova lei passa de “non sense” a ilegal: o Código Tributário Nacional – CTN, a lei das leis em matéria tributária, é cristalino quando afirma a superioridade hierárquica dos tratados internacionais (artigo 98), posição já reconhecida reiteradamente pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que, recentemente, reconheceu-a exatamente no tema da tributação dos lucros das subsidiárias de empresas brasileiras no exterior.
Reciprocidade de tratamento. Não é raro a elaboração e a aplicação da lei tributária desviarem o olhar das demais normas jurídicas com as quais tem relação. Esse tipo de miopia chegou ao extremo na regulação dos lucros gerados no exterior pela MP 627.
Tome-se a seguinte situação hipotética: empresa brasileira constitui uma subsidiária no País das Maravilhas que, por sua vez, adota a lei societária brasileira nos seus exatos termos “ipsis litteris” – ou, para usar uma expressão do mundo corporativo moderno, utiliza o procedimento de “copy” e “paste” na Lei n° 6.404 (Lei das Sociedades por Ações). Nesse caso, parcela do lucro gerado pela controlada no País das Maravilhas não será jamais distribuída para a sua controladora no Brasil, salvo quando da sua extinção. Isso porque a lei societária prevê a compulsória retenção de parte do lucro gerado, tal como a reserva legal, a reserva estatutária, a reserva para contingência e a reserva para investimento.
Acontece que, mesmo sendo uma retenção obrigatória por lei, o que implica dizer que a controladora brasileira não terá a disponibilidade dessa parcela do lucro em decorrência de expressa previsão legal, o montante integral do lucro gerado no exterior estará sujeito ao imposto sobre a renda brasileiro – e, repita-se, a lei societária do País das Maravilhas é absolutamente idêntica, em todos os pingos de “i” e em todas as vírgulas, à lei societária brasileira.
Em conclusão, por essas e outras, as novas regras sobre tributação dos lucros gerados no exterior por subsidiárias de empresas brasileiras não reduziram o contencioso tributário sobre o tema, mas, muito ao contrário: além de algumas discussões antigas não resolvidas, novos conflitos surgiram. E quem perde com isso é a competitividade das empresas brasileiras.
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