Por Laura Ignacio e Fernando Torres | De São Paulo – 20/02/2014 às 05h00.
Uma nova batalha jurídica entre empresas de grande porte e o governo poderá ser travada se, na conversão em lei, a Medida Provisória nº 627, de novembro do ano passado, mantiver em seu texto a nova forma de tributação de lucro de controladas e coligadas no exterior. Além de garantirem que os litígios sobre o assunto no Judiciário se multiplicarão, empresas de grande porte que se internacionalizaram nos últimos anos afirmam que novos projetos poderão ser engavetados. Ao mesmo tempo, companhias estrangeiras poderão deixar de investir no Brasil e montar a base de seus negócios para a América Latina em outros países.
A nova legislação sobre o tema foi negociada por dois anos com o Ministério da Fazenda, por meio do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). As empresas concordaram em deixar de lutar pela isenção total ou pelo regime de caixa, se o governo tributasse o lucro da controlada no exterior somente oito anos após a apuração do resultado. Mas quando saiu a MP, em novembro, o prazo diminuiu para cinco anos, com uma parcela de 25% do imposto sendo devida já no ano seguinte, e com a incidência da taxa Libor e variação cambial sobre a diferença não recolhida imediatamente. Em vez de um diferimento de tributo, o governo criou um financiamento, segundo as empresas.
Com mais de cem artigos, a MP criou um programa especial de parcelamento de débitos específico para livrar as empresas de autuações fiscais do passado. Além disso, instituiu a possibilidade do uso de prejuízo registrado em um país para abater do lucro em outro – o que pode reduzir a base de cálculo do Imposto de Renda (IR) e da CSLL. A alíquota é de 34%.
Apesar de aparentemente a MP trazer benefícios para as companhias, diretores jurídicos de grandes empresas afirmam que, na prática, o que se viu foi uma série de medidas fiscais que comprometerão a competitividade das companhias e reduzirão o interesse de estrangeiras pelo país. “Há dispositivos da MP que possibilitarão ao Fisco tributar, além do lucro, o patrimônio, o que seria ilegal e inconstitucional”, afirma uma fonte.
Especialistas dizem que a situação é agravada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, que não definiu a tributação das coligadas e controladas localizadas em países com os quais o Brasil tem tratado para evitar a bitributação, pois torna o país um dos mais onerosos para se investir.
Uma controladora brasileira com subsidiária no Reino Unido, por exemplo, que tiver lucros apenas reconhecidos (registrados no balanço) no Brasil de R$ 100 milhões, pagaria R$ 23 milhões de IR local, mais R$ 11 milhões do imposto no Brasil (34%). Já uma controladora francesa, também com subsidiária no Reino Unido, que tivesse R$ 77 milhões de dividendos efetivamente recebidos na França, pagaria o mesmo IR local e apenas R$ 1,28 milhão de imposto na França (33,33% sobre 5% do total).
Em uma outra hipótese, se a Espanha, por exemplo, concede benefício fiscal e cobra só 14% de IR para atrair empresas de um determinado setor, uma companhia espanhola ou subsidiária de outro país europeu pode aproveitar-se dele de forma integral. Já a brasileira pagaria ainda ao Brasil a diferença em relação à alíquota nacional de 34%, ou seja, 20% para o Fisco brasileiro. “Assim, não dá para competir”, diz uma fonte, para quem a melhor saída seria a derrubada da MP, caso não seja alterada.
As empresas já estabelecidas lá fora reclamam ainda que o lucro que obtêm no exterior para reinvestir acaba esvaziado porque a empresa tem que tirar do caixa da matriz ou da subsidiária para pagar imposto sobre esse lucro no Brasil. “Já há empresas brasileiras de capital fechado que se internacionalizaram fazendo reestruturações societárias para fazer a consolidação na Holanda”, afirma um advogado.
Um dos dispositivos questionados da MP 627 é o que aplica o método de equivalência patrimonial, usado para invalidar o uso dos tratados antibitributação. O artigo 73 diz que a “parcela do ajuste do valor do investimento” em controlada no exterior, e não o lucro dela, deverá ser computada na determinação do lucro real e na base de CSLL.
Outro quesito que pode ir para a Justiça são as condições para consolidação e diferimento do tributo. Pelo texto da MP, as controladas em que a renda passiva superarem 20% da renda total ficam de fora da consolidação e do diferimento de imposto. Pelo texto original, além de juros e royalties, entraram no conceito de renda passiva também os dividendos e as participações societárias. Segundo as empresas, isso prejudica o uso de uma estrutura de holdings no exterior, já que a empresa “de cima”, mesmo que também tenha atividade operacional, poderá ter parte relevante de seu ganho advindo da participação societária em controladas.
Para o tributarista Marcos Matsunaga, que representou a Marcopolo na discussão sobre o tema no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o conceito de renda ativa deve gerar muitos questionamentos. “A empresa pode ter outra no exterior que se dedica à pesquisa e desenvolvimento tecnológico e é remunerada por royalties. Mesmo que essa seja a atividade operacional da empresa, essa renda não poderia fazer parte da consolidação.”
Também deve ser questionada a restrição da compensação até 2017, que o relator estendeu para 2020. Segundo a advogada Vanessa Canado, professora da Direito GV, se o Fisco não permitir efetivamente a compensação estará tributando patrimônio em vez da renda. Ela lembra que o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) diz que incide IR sobre a renda, que é o acréscimo de patrimônio de forma periódica. E que o artigo 153 da Constituição Federal determina que a União pode tributar a renda.
Para o economista Bernard Appy, diretor da LCA Consultores, o Brasil precisa ficar alinhado com a tributação internacional. Para isso, uma das soluções seria a volta do regime de caixa, que consta em uma das emendas à MP 627. “O Brasil está longe do padrão mundial, desestimula a internacionalização e, com isso, incentiva as empresas a se constituírem no exterior”, afirma.
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