Por Daniel Burg e Marina Toth – Valor – 10/03/2016 – 05:00.
Um dia após alijar da Constituição Federal a garantia fundamental da presunção de inocência, o STF, em outra triste tarde, desconstruiu a jurisprudência até então consolidada no sentido de que a Receita Federal não pode solicitar, de ofício, informações diretamente das instituições financeiras, o que só poderia ocorrer com ordem judicial.
O antigo e acertado posicionamento foi consolidado quando ministros do STF e do STJ, em observância à Constituição, passaram a posicionar-se em respaldo à inviolabilidade do sigilo dos dados fiscais do contribuinte, bem como em defesa da intimidade e privacidade às correspondências e comunicações.
Em 2010, o STF manifestou-se diretamente sobre o tema no RE 389.808, de relatoria do ministro Marco Aurélio, quando decidiu que a privacidade era a (óbvia) regra constitucional, e que a quebra de sigilo somente deveria ocorrer em casos extraordinários e desde que submetida ao crivo do Judiciário.
Estamos navegando por águas perigosas, onde o Estado pode cada vez mais e o cidadão cada vez menos.
O STF, lúcido naquela tarde, afirmou que a Receita Federal é parte na relação tributária, não lhe cabendo, assim, deter tamanho poder, sob pena de franca inconstitucionalidade. Outro entendimento não era e não é possível, pois a inviolabilidade dos dados visa, justamente, proteger o cidadão de arbitrariedades. Após referido julgado, foram inúmeras as decisões em que tais dados, obtidos sem o devido crivo legal, foram considerados provas ilícitas e, portanto, excluídos dos processos.
Contudo, ao julgar a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar 105/2001, que permite aos bancos fornecer dados de contribuintes à Receita sem prévia autorização judicial, o STF, por maioria de votos, guinou em 180 graus seu entendimento, e seguindo uma dura tendência de mitigação contumaz de garantias fundamentais, autorizou o compartilhamento de informações diretamente entre o Fisco e instituições financeiras, dispensando-se autorização judicial.
A fantasia jurídica para dar ao disparate ares constitucionais ficou clara quando o ministro Fachin ressaltou que houve apenas traslado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal. Ora, traslado do dever de sigilo entre esferas? Será que poderíamos também realizar transferência do dever de pagar tributos, desconfigurando então o crime de sonegação fiscal? Com a devida vênia,tal raciocínio nos parece não fazer sentido.
O ministro Marco Aurélio, mesmo após o resultado já estar decidido por maioria dos votos 1, lançou luz à uma Corte que parece voar a mercê dos ventos de Brasília, afirmando que a quebra de sigilo não pode ser manipulada de forma arbitrária pelo poder público, bem como que “No Brasil pressupõe-se que todos sejam salafrários, até que se prove o contrário […] Não entra na minha cabeça que a Receita, órgão arrecadador e fiscalizador, tenha prerrogativa superior à do Judiciário”.
A decisão equivocada que o STF tomou significa, na prática, que sem informar razões ou finalidades, sem ser escrutinada pela necessidade, adequação ou proporcionalidade da medida, a Receita Federal pode solicitar diretamente às instituições financeiras as minhas ou as suas informações bancárias, ter acesso aos gastos de cartão de crédito, às transferências entre contas, às contas pagas e recebidas, ao seu perfil de investidor, aos seus investimentos e poupanças, e tudo isso, sem que haja motivação declarada ou autorização judicial, evidenciando um monstruoso controle Estatal do indivíduo.
Basicamente o que se criou foi uma exceção à inadmissibilidade de provas ilícitas no processo penal, ou seja, a corte máxima chancelou um sistema que facilita vazamento de informações e incursões meramente exploratórias de dados sigilosos alheios.
Nem 15 dias se passaram da decisão e seus nefastos efeitos começam a tomar forma. A Superintendência-Geral do Cade, que hoje, somente pode ter acesso a informações fiscais relacionadas a compras públicas por meio de procedimento administrativo, está em vias de celebrar, com a Receita Federal acordo para acessar, também sem autorização judicial, os dados a ela “trasladados”, ou seja, estamos falando de indevido compartilhamento de dados sigilosos.
É muito difícil entender a motivação do STF desta e de uma série de outras más decisões recentes que se colocam contrárias ao texto constitucional e reforçam nosso receio de estarmos navegando por águas perigosas, onde o Estado pode cada vez mais e o cidadão cada vez menos.
O STF é uma corte suprema detentora de deveres que vão além da preservação do estado democrático. Dessa forma, quando existe um enrijecimento do tecido social, uma tendência popular muito forte de violação de direitos e garantias individuais, que vai desde questões da personalidade até questões de privacidade e sigilo, ainda que a violação de tais garantias seja expressa pela vontade da maioria naquele momento, o STF tem não apenas a prerrogativa, mas o dever constitucional de se posicionar em defesa daqueles cujas garantias estão prestes a serem violadas, funcionando como barreira capaz de conter a multidão polvorosa e a paixão irracional da maioria, que, sedenta, comete atrocidades em busca do que pensa ser justiça.
Nesse sentido vem falhando o STF, permitindo que cada vez mais garantias fundamentais do cidadão sejam mitigadas em atendimento aos gritos ferozes da rua. Essa postura, ao nosso ver, se deve à uma politização intensa do Supremo, que com sua nova composição de ministros, vem cada vez mais se portando como um ente cuja finalidade é política, e cada vez menos guardião do texto constitucional.
1) O julgamento foi finalizado em 24 de fevereiro de 2016 e, por 9 votos a 2, o STF confirmou que a Receita passa a obter dados bancários sem a necessidade de intervenção judicial.
Daniel Allan Burg é advogado criminalista sócio do Burg Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal Econômico pela Escola de Direito do Brasil.
Marina Toth é advogada criminalista sócia do Toth Advogados Associados, com mestrado pela University of Michigan.