https://valor.globo.com/empresas/noticia – 17/01/2022.
Por Fernanda Guimarães e Juliana Schincariol, Valor — De São Paulo e do Rio.
O problema na Americanas foi identificado na “conta sacado” — termo que todo o mercado foi obrigado a aprender ao longo dos últimos dias.
Nos últimos cinco dias, auditores, contadores e executivos da área financeira estão debruçados sobre o “caso Americanas”, tentando entender o problema do balanço da varejista, que se tornou público na última quarta-feira por meio de um fato relevante que informou ao mercado sobre um rombo da ordem de R$ 20 bilhões A pergunta que ficou é onde está essa cifra bilionária no demonstrativo financeiro. A conclusão é de que houve uma “contabilidade muito criativa”, segundo especialistas ouvidos pelo Valor.
O problema foi identificado na “conta sacado” — termo que todo o mercado foi obrigado a aprender ao longo dos últimos dias. Para os reguladores não é necessariamente uma novidade e há tempos é fonte de preocupação. Foi esse sinal de alerta que levou, em 2016, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a se pronunciar sobre o tema. Com os problemas ganhando escala, mais recentemente, em novembro de 2021, o Iasb, organização internacional que publica e atualiza o IFRS (as normas de contabilidade), solicitou, via audiência pública, retornos dos agentes de mercado sobre uma possível orientação relacionada ao tema.
Esse tipo de transação começou a atrair mais atenção, diante do crescimento da atividade de “marketplaces” (shopping center on-line) no país, muito por conta do crescimento do comércio eletrônico, na esteira da pandemia. E as transações com fornecedores, envolvendo os bancos, se tornam essenciais para manter o fluxo das varejistas.
Os fornecedores menores, principalmente, precisam ser financiados e o número mensal de operações deu um salto, o que passou a exigir mais atenção sobre como essa operação deve ser lançada nos balanços.
Mas o que chamou a atenção dos especialistas foi como o balanço da Americanas “escondeu” os R$ 20 bilhões, já que as dívidas bancárias, assim como os juros da transação, foram pagas às instituições financeiras. “Para mim, a principal fraude é em como eles arrumaram um jeito de pagar os juros e justificar uma saída de caixa, sem dizer que eram juros e sem que isso impactasse os resultados”, afirma André Pimentel, que atuou na reestruturação das Americanas nos anos 1990 e que hoje é sócio da consultoria Performa Partners, que tem vários clientes do setor de varejo na lista de clientes.
O especialista afirma que, ao não contabilizar os juros, o valor não transitou nas despesas financeiras e por isso o lucro que acabou sendo reportado estava maior do que deveria. Ao se trazer a valor presente toda essa conta, o patrimônio líquido da Americanas deverá ficar negativo. Por isso a capitalização será necessária, para se equalizar o balanço.
E as hipóteses começam a surgir. A mais provável, na visão de Pimentel, é de que os próprios fornecedores arcaram com os juros que foram pagos. “A Americanas sempre foi agressiva com os fornecedores”, disse. Segundo ele, a varejista cobra de seus fornecedores uma série de taxas, como custos com logística e marketing, por exemplo, itens que diminuem o valor a receber. O custo com os juros poderia estar embutido em uma dessas cobranças, diz o especialista.
Para o sócio da Performa Partners, não são necessárias mudanças nas regras para o “risco sacado”. A própria CVM, quando deu o alerta ao mercado em 2016, “disse o óbvio”. Segundo ele, como o mercado está preocupado com o tema, em especial os bancos, um dos efeitos da crise da Americanas é que as empresas que fazem certo terão que explicar ainda mais suas operações.
A percepção de que deveria haver mais clareza por parte das empresas para se divulgar a “conta sacado” é um ponto levantado pelo Iasb. No documento, chamado de “Supplier Finance Arrangements”, a instituição internacional estabeleceu, por exemplo, uma proposta que, dentre outras aspectos, estabelece que as companhias devem fazer mais divulgações sobre tais operações. Para deixar mais claro nas demonstrações de fluxo de caixa para quem a empresa está pagando os valores decorrentes de aquisições de fornecedores, ou seja, de fornecedores ou de bancos.
As operações de “risco sacado”, também conhecidas como “forfait”, em geral decorrem de uma triangulação entre a empresa (comprador), fornecedores e bancos. Essas operações usam os recebíveis de clientes para alavancar a companhia com financiamento nos bancos e com a garantia da empresa, sem necessariamente, serem representadas como passivos financeiros, por conta da especificidade de cada formato de operação.
Vale lembrar que essas operações não estão restritas ao varejo e não necessariamente estão erradas. Elas podem ensejar ao comprador a necessidade de representar um passivo financeiro ou minimamente impor o detalhamento em notas explicativas, com o objetivo de divulgar que não se trata de típicos pagamentos a fornecedores.
Esse tipo de situação pode ocorrer de diferentes maneiras. Em um dos formatos, a empresa compra de fornecedores, que podem utilizar “contas a receber” e descontá-lo no mercado financeiro, como se fosse um desconto de duplicata. Neste processo, o comprador seria passivo nesta situação, que envolveria apenas os bancos e os fornecedores.
O outro caso seria justamente o oposto. O comprador pode acionar a instituição financeira e informando que precisa de auxílio para estruturar um arranjo de pagamentos junto aos seus fornecedores. O banco pode ajudar a empresa a estruturar uma linha de capital de giro, por exemplo, e o comprador informa ao seu fornecedor que ele vai receber diretamente da instituição financeira, que vai descontar os juros do comprador. Assim, o comprador é um sujeito ativo na triangulação, que procurou o banco para financiar o capital de giro e fazer a operação para financiá-lo.
“Geralmente, há uma imensidão de contratos e várias estruturações possíveis. Os próprios bancos propõem às empresas como fazer isso. Um dos grandes atrativos é a possibilidade de não colocar no balanço como passivo financeiro”, afirma o pesquisador e especialista em contabilidade, Eduardo Flores. O projeto do Iasb tem como objetivo dar mais clareza sobre o tema e Flores foi um dos relatores no Brasil por meio do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC). “Quando você olha para a demonstração de fluxo de caixa da empresa, há uma linha de pagamento de fornecedores que paga diretamente aos fornecedores. Há outra linha de instituições financeiras, referente a empréstimos e financiamentos. Essas variações da demonstração do fluxo de caixa decorrem da forma como os passivos estão registrados no balanço patrimonial e possuem conotações diferentes, podendo afetar o cálculo da alavancagem”, explica.
Lançado há quase sete anos, o ofício-circular da CVM alertou sobre a necessidade das empresas avaliarem essas operações e mostra que a preocupação não é nova. A recomendação do regulador do mercado de capitais foi a de que se houve o entendimento de que a operação se tratava de uma dívida bancária, deveria ser reclassificada no balanço como tal. O Iasb, alinhado com a CVM, orienta que é importante saber o quanto a empresa paga de fato para o fornecedor e para os bancos.
Uma eventual reclassificação de “contas a pagar” aos fornecedores para passivo financeiro implica em um endividamento financeiro maior. Ou seja, a empresa poderia estar sujeita a uma alavancagem financeira mais alta, que poderia acionar os “covenants” — cláusulas que permitem ao credor antecipar a cobrança de débitos.
Na visão de Flores existe um espaço e nem todas as operações de “risco do sacado” são necessariamente uma dívida bancária. Para o especialista, uma reclassificação deve ocorrer quando prazos ou valores a serem pagos forem alterados, ou seja, modificações das condições originárias das operações.
“A preocupação com as empresas é sobre os indicadores financeiros. Por isso que o Iasb tem essa intenção de que as operações sejam refletidas pela sua essência econômica e não de forma automática. O usuário da demonstração financeira precisa ter informações sobre a origem, natureza e tipificação do que está sendo pago e para quem está sendo pago”, afirma.