https://valor.globo.com/financas/noticia – 18/12/2023.
Por Nelson Niero e Rita Azevedo — De São Paulo.
Especialista em contabilidade diz que caso Americanas foi uma armação grosseira, mas feita com eficiência.
Eliseu Martins: “Tem a fraude um pouco mais refinada e a fraude grosseira, de inventar coisas” — Foto: Leo Pinheiro/Valor.
Uma fraude grosseira, mas ao mesmo tempo feita com muita eficiência, a ponto de enganar todos os níveis de controle internos e externos. Esse resumo do caso Americanas explica por que o professor de contabilidade Eliseu Martins ficou – e continua – indignado com um dos maiores escândalos empresariais do país.
Em artigo publicado em maio na revista “Capital Aberto”, Martins, uma das maiores referências da contabilidade financeira, declarou que raras vezes se sentiu “tão mal como contador, professor de contabilidade, consultor, parecerista da área e cidadão”. Em entrevista ao Valor, onze meses depois de vir a público as “inconsistências contábeis” da varejista, o professor diz que ainda não se conformou.
Essa perplexidade ganha muito mais relevância diante da longa carreira de mestre de Martins e ao mesmo tempo ressalta a gravidade do caso. Mineiro de Albertina, atualmente morando em Espírito Santo do Pinhal (SP), Martins dirigiu a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo de 1998 a 2002, depois de ter sido chefe do Departamento de Contabilidade e Atuária de 1991 a 1994, e constituiu a FEA da USP de Ribeirão Preto.
Foi diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entre 1985 e 1988, quando, em meio à hiperinflação, implantou a correção monetária integral dos balanços. O professor Eliseu Martins participou ativamente da implantação das Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS) no Brasil e voltou a integrar o colegiado da CVM entre 2008 e 2009 para ajudar nessa implantação. Ainda hoje é membro convidado do Comitê de Procedimentos Contábeis (CPC), que emite as regras no país.
Leia, a seguir, os principais pontos da entrevista.
Valor: O sr. continua indignado com o caso da Americanas?
Eliseu Martins: Continuo sim. Continuo envergonhado pelo que se utilizou da contabilidade para perpetrar tamanha farsa. O que foi feito ali é a fraude do jeito mais horrível que pode ocorrer. A governança existe para o bem e para o mal e, no caso da Americanas, é visível que usaram todo um sistema para essa fraude.
Valor: Com o que já foi revelado até agora, é possível dizer que a fraude na Americanas envolveu vários escalões da empresa?
Martins: Eu não posso dizer quem, mas obviamente envolveu pessoas de vários escalões, não tenho dúvida. Até o nível da diretoria, eu não posso dizer que todos, mas pessoas muito relevantes da diretoria. E daí envolve algumas superintendências, a contabilidade. Disso aí eu não tenho a mínima dúvida. Eu só não falo nada do Conselho de Administração porque houve evidências de que conselheiros, de que o comitê de auditoria, procuraram informação, o que foi registrado em ata, e as respostas foram mentirosas. Nada vi contra eles. Então, eu não sei, mas que gente da diretoria [estava envolvida] não há dúvida nenhuma. Quais pessoas e quantas eu não sei dizer. Não daria para ter havido isso tudo sem participação de gente da diretoria-executiva. Foi uma fraude grosseira.
Valor: Por que grosseira?
Martins: Foi tecnicamente grosseira. O engraçado é que no começo falou-se demais do risco sacado. O que foi feito é uma falsidade grosseira. É não lançar as despesas financeiras contra o resultado e diminuir da conta de fornecedor. Isso é coisa que nem principiante de contabilidade faz por engano. Não existe essa hipótese. O que é ainda pior, e infelizmente é mais comum, como mostrou esse caso do Magazine Luiza [a empresa reclassificou contas no último balanço], são essas operações de bonificação. Essas bonificações, normalmente, podem ensejar até fraudes, vamos dizer, com relação a quando apropriá-las. Aparentemente, por tudo que foi dito pela Magalu, foi um problema de quando apropriar. Eu, como fornecedor, digo que vou abater da conta se a empresa fizer isso ou aquilo durante um ano. Aí a empresa vai e já contabiliza tudo de uma vez. Isso é um erro que altera os resultados de cada período, mas que depois se compensam, então você antecipa o lucro, por exemplo, mas no acumulado você não vai aumentar o lucro. Infelizmente, é um negócio que tem acontecido até que com frequência e que não tem sido alvo de bons controles.
Valor: Como acontece esse tipo de problema?
Martins: Os gerentes de uma rede de varejo, por exemplo, são avaliados e podem receber uma bonificação em função da sua performance. Então, se ele tem que cumprir um negócio desse por um ano, se ele puder reconhecer logo essa receita, ele lança a bonificação neste ano, ao invés de ficar o grosso para o ano que vem. Conheço o caso de uma empresa que montou um sistema de controle interno voltado exclusivamente para essa questão, que é um problema de reconhecimento temporal. Na Americanas, no entanto, grande parte, bilhões de reais, foi invenção de acordos que não existiam. Você vai lá e contabiliza o que não existe, falsifica acordos. De tudo que apareceu aí houve acordos, mas falsificados, criados pela empresa e assinados pela própria empresa dos dois lados. Isso é coisa grosseira. É a mesma coisa que contabilizar que fez vendas, criar um monte de contas a receber de clientes que não existem. Tem a fraude um pouco mais refinada e a fraude grosseira, essa de inventar coisas. Isso é falsificação.
Valor: E como o sr. vê a atuação dos auditores?
Martins: Eu confesso que é difícil avaliar, mas nada sei contra eles. A gente conhece os trabalhos dos auditores, convive com eles. O fato é que é fácil enganar auditor, por incrível que pareça. Há 30 anos eu escrevi um texto dizendo que, com a evolução da tecnologia, iria ficar cada vez mais fácil cometer fraudes. Isso foi antes da Enron [empresa americana de energia que quebrou em 2001, depois de rumoroso caso de fraude que teve repercussão mundial]. Um cara só da tecnologia já basta pra fazer uma fraude. Ele pode criar funcionários fantasmas e o dinheiro ir todo para ele. Isso é comum em empresas que não tem controle. Isso existe no Estado, já foi feito dentro do Tribunal de Contas. Agora, casos maiores sempre têm o apoio de alguém lá de dentro. Pegue o caso do Banco Nacional [sofreu intervenção em 1995, depois que o Banco Central identificou sistema de ‘contabilidade fictícia’]. Era o cara da tecnologia e o presidente do banco. O contador não sabia da história. Antigamente, para cometer fraudes, você tinha que envolver todo mundo. Havia uma loja de departamento grande, quando eu era estudante ainda, chamada Lojas Fuganti. Ela quebrou porque um funcionário foi na Receita Federal que tinha acabado de ser instalada em Londrina e dedou todo o esquema. Ele sabia de tudo porque controlava o depósito, o que entrava e saía. Hoje tem redes de supermercados em cidades pequenas com sistema que automaticamente desliga os caixas. É até estranho que esse caso da Americanas tenha envolvido tantos níveis hierárquicos. A fraude hoje é mais fácil de ser feita. Tenho dó dos auditores.
Valor: Há que se considerar que os auditores conseguem descobrir ou evitar fraudes, mas isso raramente vem a público.
Martins: O que existe de fraude é muito mais do que a gente vê, e muitas descobertas por auditores. O que acontece é que a maior parte das empresas, se puderem, encobrem, por causa do problema de imagem. Se a empresa puder, não vai mostrar para ninguém, vai resolver lá dentro. Infelizmente, hoje a exigência dos controles internos cresce exponencialmente comparativamente ao crescimento da tecnologia.
É até estranho que esse caso da Americanas tenha envolvido tantos níveis hierárquicos”
Valor: Seria bom para a imagem das auditorias se isso viesse a público, quando eles conseguem descobrir ou evitar uma fraude…
Martins: Sim. Mas elas são proibidas de falar. Se o cliente não tiver interesse, vai ficar por isso mesmo. Eles vão resolver internamente de alguma maneira. Podem ser mostrados simplesmente como erros.
Valor: Na Americanas, sem falar agora de auditor, o sr. acredita que pode ter havido um relaxamento maior porque havia muita confiança na competência dos três sócios de referência?
Martins: Para mim, só existe essa explicação. Você viu a lista dos bancos? Os bancos têm conhecimento dos volumes de empréstimos. Qualquer empresa que não tivesse os três pelas costas jamais teria chegado naquele nível de endividamento junto aos bancos. Aqui é uma mera ilação (…). Pode ter havido erros, mas pode ser que não. Com juros bons, e com aqueles três personagens por trás, é muito fácil haver relaxamento em certos controles. Não sei o que de fato ocorreu, mas eles não iam arriscar números tão grandes se não tivesse os três por trás. Os bancos disputavam crédito para a Americanas.
Valor: Do ponto de vista de continuidade, há como a empresa se recuperar depois desse baque num setor tão problemático? O aumento de capital dos credores e dos sócios resolve?
Martins: Pode ter até o aumento de capital, redução do endividamento, mas a empresa tem uma estrutura pesadíssima e não será fácil conseguir se sustentar. Mas eles têm os três por trás, que já fizeram muito milagre.
Valor: O sr. acha que vai haver algum endurecimento por parte das auditorias na checagem das contas?
Martins: Sim, e isso já começou nos balanços de logo depois do negócio da Americanas. O encerramento dos balanços de 2022 já teve um conjunto de procedimentos bem mais refinados e agora as empresas de auditoria montaram todas elas um sistema mais rígido de controle de verificação dessas operações e das operações de bonificação. Muito, muito, muito mais forte do que antes. Então a reação por parte dos auditores já existiu. Teve muito balanço atrasado por causa disso.
Valor: O sr. foi procurado por algum dos envolvidos no caso da Americanas para avaliar, dar parecer?
Martins: Sim, por vários. Para análise, mas parei, com exceção de um que estou naquele processo de discutir, de analisar. São pareceres técnicos. Mas eu ainda tenho que acabar de me convencer.
Valor: A BDO assumiu a auditoria da Americanas no lugar da PwC, que não quis emitir o relatório antes das conclusões da investigação do comitê independente. A BDO emitiu. Não é arriscado para a auditoria?
Martins: Na verdade, não emitiu.
Valor: Ela se protege com a abstenção de opinião?
Martins: É claro que ela entra com um nível de rigor muito mais alto do que o normal de uma empresa de auditoria. A empresa conciliava a conta de fornecedores perante os auditores. Aquele saldo que estava lá. Agora, o número é muito maior e essa listagem nova os auditores estão dizendo que não conseguiram conciliar de maneira completa? O problema é realmente de natureza técnica. Pode ser que ainda tenha problema em fornecedores ou outras contas, desse valor que está no balanço, e pode ser que não seja aquele. E o auditor fica precavido. Ou seja, qualquer coisa passa a ser o que, na linguagem deles, é material, é relevante. E há principalmente o problema da efetiva continuidade da empresa, ainda não totalmente definida. É totalmente compreensível essa posição.
Valor: A KPMG, quando assumiu, chegou a alertar que o controle não estava bom…
Martins: É por isso que eu sempre fui muito favorável ao rodízio obrigatório de auditores. Nossa, eu tive um problema sério com os meus amigos auditores, porque eu sempre fui claramente favorável ao rodízio. Não há dúvida, é natural, é do ser humano o maior ceticismo e a procura por falhas nessas situações. Mas mesmo assim nada dessa grandeza se vislumbrou.
Valor: O sr. está acompanhando o trabalho feito pelo comitê independente?
Martins: Não, não. Aí há uma muralha chinesa. Aí eu nem pergunto, está certo? Olha, o presidente foi meu colega de CVM, o Otavio Yazbek, que é meu amigo. O Flores, meu colega. Dou aula junto com ele. E aí eu não pergunto nada. Confesso que eu não tenho a mínima ideia do que eles estão fazendo e faço questão de não saber. Por enquanto.