https://valor.globo.com/empresas/noticia – 15/09/2023.
Por Nelson Niero, Valor — São Paulo.
Para Eliseu Martins, professor da USP, a resposta passa por declarar a independência do profissional responsável pela elaboração das demonstrações financeiras, ou seja, do contador.
Como evitar as “inconsistências contábeis”? Declarar a independência do profissional responsável pela elaboração das demonstrações financeiras, ninguém menos que o contador.
A sugestão foi feita por Eliseu Martins, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, durante o encontro promovido na quinta-feira pela Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca).
Se contador respondesse diretamente ao conselho de administração e ao comitê de auditoria, poderia ter, em teoria, mais salvaguardas para resistir às pressões de um executivo interessado em flexibilizar algumas regras.
“O código de ética do contador diz que ele deve seguir as normas técnicas, mas sabemos que existem pressões para que essas regras sejam quebradas”, disse Martins, durante o painel “Controles internos relacionados à elaboração e divulgação de relatórios financeiros”. Essas pressões podem levar a concessões por parte do contador, que “apesar de inadmissíveis, acontecem”, disse.
Em janeiro, a rede varejista Americanas anunciou a descoberta de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões nas contas da empresa. O rombo não foi citado diretamente durante o painel, porém permeou todo o debate.
“Eu ia dar um exemplo recente, mas todo mundo já sabe”, disse Martins, acrescentando que não poderia imaginar que, do alto dos seus 78 anos, ainda fosse presenciar a invenção e, pior, a colocação em prática de “certas heresias contábeis”.
O comitê independente contratado para o caso ainda não terminou suas investigações. Informações preliminares divulgadas pela empresa apontam para fraudes envolvendo principalmente, mas não só, valores inflados de bonificação de fornecedores (com possível falsificação de contratos) mascarados em lançamentos em outras contas do balanço patrimonial.
O moderador do painel, Alexsandro de Lima Tavares, gerente sênior de contabilidade da Renner, deu sequência à “provocação” de Martins e afirmou ficar incomodado com o fato de a área de controladoria não aparecer com clareza nos organogramas de governança. “Essa área decide muita informação que vai para o mercado.”
“De fato, é nebuloso”, respondeu Martins. “O produtor das informações contábeis responde a quem? Ao diretor financeiro? Muitas vezes, em empresas menores, é diretamente ao controlador. Então ele acaba ficando dependente demais a uma pessoa só.” Esse reporte direto, sem outros canais, pode levar a “más consequências”, disse Martins, num equilíbrio difícil entre independência técnica e dependência pessoal.
Não seria o caso de o contador responder diretamente ao comitê de auditoria, nem que fosse matricialmente, perguntou Tavares a Amaro Gomes, membro do comitê de auditoria do Bradesco.
O ex-chefe do Chefe do Departamento de Normas do Sistema Financeiro do Banco Central disse não acreditar que seja esse o caminho. “Iria desvirtuar o objetivo do comitê de auditoria, porque ele se tornaria, de certa forma, diretamente envolvido com a administração da organização.”
O que pode ser feito, acrescentou, é aproximar o comitê das áreas envolvidas com a elaboração das demonstrações contábeis, identificando os itens mais relevantes, discutindo sistemas, controles e premissas. Em caso de problema, o comitê levaria a questão para o conselho.
Martins, um dos autores do “Manual de Contabilidade das Sociedades por Ação”, principal referência dos profissionais do setor, concordou que é preciso mais proatividade do conselho de administração. “O comitê de auditoria aperta os auditores externos de toda maneira, mas não questiona quem fez o balanço.”
A sócia da KPMG e coordenadora da comissão de finanças e contabilidade do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Eliete Martins, também defende uma maior participação dos conselheiros. “Eles precisam debater a qualidade dos controles internos, avaliar as fragilidades e cobrar da gestão um plano de ação para mitigar esses riscos”, disse.
Ela citou um estudo da KPMG com informações das cartas de controle interno dos auditores de 280 empresas de capital aberto mostrando que 35% tiveram deficiências relevantes nesse quesito em 2022. “Está abaixo dos 50% observados durante a pandemia, quando houve uma flexibilização de controles, mas ainda é alto.”
A KPMG foi a auditoria independente da Americanas entre 2016 e 2018. Em audiência no começo de agosto na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o caso, a sócia de auditoria, Carla Bellangero, disse que foram identificadas deficiências nos controles internos, e que as questões foram levadas aos órgãos da administração.
Representando a PwC, Marcos Martins, sócio da empresa de auditoria, chamou a atenção para o fato de a controladoria ficar “de fora” das atividades mais dinâmicas das empresas, como novos negócios e operações de fusões e aquisições. Ele também destacou a questão da qualidade das pessoas envolvidas no aperfeiçoamento dos controles. “O auditor precisa questionar e usar sua experiência e conhecimento da empresa”, disse.
A PwC fez a auditoria externa da Americanas entre 2011 e 2015. Voltou em 2019 depois da KPMG e ficou até meados deste ano.
Na CPI, Fábio Cajazera Mendes, sócio de auditoria da PwC, disse que o caso “reúne vários, se não todos, os elementos previstos na norma profissional sobre fraudes de difícil detecção”.
Em janeiro, a rede varejista Americanas anunciou a descoberta de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões nas contas da empresa — Foto: Bloomberg