VALOR- 27/12/2021
Por Thais Folgosi Françoso.
Tanto os advogados devem observar as normas contábeis quanto contabilistas devem observar as jurídico-processuais.
Inicialmente, essencial um alerta aos leitores: o CPC15 destacado no título deste artigo refere-se ao Código de Processo Civil, vigente desde 2015 e não ao CPC 15 emitido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que trata da combinação de negócios, muito embora o objetivo do presente artigo seja exatamente entender como o processo civil tem afetado a contabilidade e a sociedade de maneira geral.
Voltando ao CPC15 (processo judicial). Com esse “novo” Código, houve relevante inovação na sistemática processual brasileira, exigindo uma nova forma de se pensar o contencioso, principalmente por conta da força atribuída aos chamados precedentes, por meio da sistematização e vinculação das decisões no âmbito do processo judicial.
A nova sistemática tenta se aproximar do sistema anglo-americano do common law, no qual os precedentes têm relevância significativa, mas não abandona o formalismo peculiar do civil law, previsto no artigo 5°, inciso II, da Constituição Federal. Assim, são grandes os desafios para compreensão e atuação dos operadores de direito na nova sistemática, que exige uma atuação mais colaborativa nos leading cases (amicus curie ou troca de informações e argumentações), permitindo que os melhores fundamentos sejam, de fato, avaliados pelos Tribunais.
O CPC, artigos 926 e 927, não deixa dúvidas da pretensão de se uniformizar a jurisprudência, com vinculação das instâncias inferiores aos precedentes, todavia, o impacto dessas decisões na vida dos contribuintes, especialmente se o julgado estiver relacionado à temática tributária (inconstitucionalidades, ilegalidades, recuperação de valores pagos indevidamente), deve ser avaliado com certa cautela.
Ao analisar o impacto dos precedentes nos tribunais administrativos, tem-se um cenário bastante diverso: o Conselho Administrativo Recursos Fiscais – Carf (tribunal administrativo na esfera federal), por exemplo, aplica os temas de repetitivos (STJ) e de repercussão geral (STF) em seus julgamentos, evitando a judicialização de questões já pacificados. Já o Tribunal de Impostos e Taxas – TIT de São Paulo reluta em seguir os citados precedentes, embora exista um Projeto de Lei (367/20) em tramitação na ALESP que visa exatamente vincular as autoridades administrativas estaduais referidos precedentes.
Diante disso, o impacto dos precedentes na contabilidade das empresas tem gerado grandes discussões.
Em que momento os créditos oriundos de ações judiciais já pacificadas pelos Tribunais Superiores devem ser reconhecidos nas demonstrações financeiras?
Deve se aguardar o trânsito em julgado da ação individual de cada contribuinte ou o julgamento de um leading case já é um parâmetro para contabilização dos valores ou para sua efetiva recuperação?
A questão ganha ainda mais importância porque a Circular 07/21 do IBRACON (Instituto dos AUDITORES INDEPENDENTES) ao tratar da contabilização dos créditos oriundos da chamada Tese do Século (ICMS na base do PIS e da Cofins), em uma clara mudança de posicionamento, desconsiderou a necessidade do trânsito em julgado de cada caso, considerando a decisão do Tribunal Superior (leading case) como um indicativo de certeza e previsibilidade do crédito objeto de discussão. O mesmo aconteceu com a exclusão da Selic incidente sobre o indébito tributário da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (julgada sob a sistemática de repercussão geral pelo STF – Tema 962), sobre a qual os Auditores se posicionaram, por meio da Circular 09/21, acerca da necessidade de refletir imediatamente o julgamento do leading case nos balanços das empresas (existe ainda grande discussão com relação aplicação da norma técnica mais adequada para o Tema 962 (ICPC 20 ou IFRIC 16).
Percebe-se nos casos acima descritos, o impacto do CPC15 para além do processo judicial. No entanto, as peculiaridades dos temas tributários podem afetar o benefício financeiro dos contribuintes, mesmo nos casos em que existem processos já definidos favoravelmente pelos Tribunais Superiores, dos quais podemos citar: (i) a existência ou não de ação judicial e a data em que foi proposta (risco de eventual modulação); (ii) os riscos “meramente” processuais, ou seja, formais, que podem restringir o acesso do processo aos Tribunais Superiores (custas, formalidades, prazos, hipóteses de cabimento de recursos etc.); (iii) a distinção (distinguishing) entre o caso concreto (fatos e fundamentos expostos) e o leading case; (iv) ações que não tenham por objeto especificamente o valor efetivo a ser devolvido, limitando-se ao direito à repetição e, assim, possibilitam uma futura e nova discussão (com novo argumentos) acerca dos valores a serem recuperados em um ambiente culturalmente conflituoso (Fisco versus contribuintes); e (v) limitações para compensação do indébito, quando há a escolha do contribuinte pela compensação diretamente na via administrativa, sendo exemplos: alterações na legislação tributária, baixo fluxo de débitos para vazão dos valores, impossibilidade de utilização no prazo de 5 anos etc.
O que se percebe é que, para se refletir o impacto dos precedentes em matéria tributária, é essencial uma análise específica e detalhada de cada caso, sob a perspectiva do risco jurídico, incluindo os riscos processual e operacional.
Como se vê, embora o CPC, de maneira louvável, procure a pacificação da jurisprudência dos Tribunais Superiores, existe distinção entre as demandas que são julgadas e produzem efeitos para toda a coletividade imediatamente (controle concentrado – efeitos erga omnes) e aquelas que produzem efeitos entre as partes do processo (controle difuso).
Quando se trata de créditos fiscais oriundos de decisão judicial, a relação entre Direito e Contabilidade é uma via de mão dupla: tanto os advogados devem observar as normas contábeis quanto os contabilistas devem observar as normas jurídico-processuais e as peculiaridades de cada caso. Somente assim os créditos fiscais serão reconhecidos e mensurados de maneira adequada.
Thais Folgosi Françoso é sócia do FF Advogados e professora do Insper.
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