https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/coluna – 14/06/2023.
Por Eliseu Martins (*) — São Paulo.
Quando há fraude existe, automaticamente, a culpa do auditor? Vamos parar, recolher informações e concluir.
Há um certo tempo meu amigo advogado João Bianco compôs a música “A Culpa é do Eliseu”, que rodou muito por aí. Uma certa razão ele tinha naquele assunto (normas internacionais de contabilidade). Mas agora o que roda por todos os cantos é a pergunta: A culpa é dos auditores? E o pior, muitos estão usando a frase como resposta: “a culpa é dos auditores!”
Gestores têm promovido enormes fraudes nas demonstrações contábeis, isso é verdade. Estados Unidos, Inglaterra, China, Austrália, Japão, Alemanha, África do Sul, Brasil… Um documento do órgão que emite as normas internacionais de auditoria (IAASB – não confundir com IASB) de 2021 cita nominalmente muitos deles. Volta e meia tomamos conhecimento de processos e/ou penalidades sobre os auditores no mundo inteiro. Eu mesmo, enquanto na CVM, participei da penalização de mais de um.
Mas isso permite a banalização da frase de acusação? Quando há fraude existe, automaticamente, a culpa do auditor? Vamos parar, recolher informações e concluir.
Primeiramente, muitos pensam que são os auditores que preparam as demonstrações contábeis. Ora, a Lei das S.A. determina expressamente no art. 176 que “a diretoria fará elaborar… as… demonstrações financeiras que deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício”. Ou seja, a responsabilidade primária é da diretoria da empresa; ela é quem tem toda a responsabilidade pela elaboração, inclusive das notas explicativas. O auditor não prepara as demonstrações, ele as audita.
Depois de preparadas as demonstrações pela diretoria, as envia ao conselho de administração que se manifesta sobre elas (art. 142) e as emite e envia à assembleia dos acionistas; para auxiliá-lo nessa função o conselho costuma fazer uso do comitê de auditoria. E, obviamente, ouve o auditor que ele mesmo contrata; emitidas, o auditor emite sua opinião; depois de tudo isso, manifesta-se o conselho fiscal (se houver) diretamente à assembleia. Finalmente, quem efetua a votação, aprovando ou não, é a assembleia dos acionistas.
Logo, o auditor é contratado pelo conselho de administração para auditar as contas preparadas pela diretoria, diretoria essa também contratada por esse conselho. Repetimos: quem prepara é um, quem audita é outro. Claro, todos esses envolvidos têm todo o dever de diligência para atendimento à lei quanto ao atingimento da clareza (e da correção) exigida pela Lei.
E agora a indagação: qual o papel da auditoria? Refazer toda a contabilidade executada sob mando da diretoria? É claro que não. Ela é obrigada a seguir todas as Normas de Auditoria que visam reduzir as chances de interpretações incorretas das normas de contabilidade, de erros e também de fraudes. Mas sem poder garantir que nada disso possa ocorrer; a auditoria não é polícia, sequer é perícia. Só que, repetimos, tem que cumprir com todas as Normas de Auditoria.
O Brasil aplica as Normas Internacionais de Auditoria emitidas pelo IAASB, e o órgão que as torna obrigatórias no Brasil é o CFC – Conselho Federal de Contabilidade. A NBCTG200(R1) dá as regras, as obrigações e as responsabilidades do auditor. E os auditores precisam obter segurança razoável (item5) de que as demonstrações não contenham fraude ou erro. E ao seu final afirma a norma que asseguração razoável não é um nível absoluto de segurança, já que a maioria das evidências de auditoria é persuasiva.
É óbvio que uma gestão que frauda fará de tudo para evitar acesso da auditoria às evidências que possam indicar ou até lembrar a figura da fraude. Por outro lado, não pode o auditor se satisfazer com quaisquer informações ou descumprir com as normas de auditoria que procuram minimizar essas chances por conta de confiança pessoal, experiência passada etc. E, já escrevi há mais de vinte anos, com o tamanho das empresas e com a informatização computadorizada, cada vez mais viável ficam as fraudes cometidas por um pequeno número de pessoas, desde que no alto da administração.
Antigamente, uma simples política de compra e venda sem notas exigia participação do contador, do estoquista, do financeiro, de muitos outros funcionários e até do porteiro a checar entrada e saída de mercadorias. Um exército a praticar fraude. Hoje, duas ou poucas pessoas com acesso privilegiado ao sistema computadorizado conseguem fraudar sem que às vezes até o contador saiba (já tivemos isso num banco no Brasil). no Brasil). (Não estou afirmando nada com relação ao recente caso brasileiro, mesmo porque, apesar do recente fato relevante divulgado, faltam muitos detalhes.)
Também é claro que, com isso, cada vez mais as técnicas de auditoria se sofisticam e também se desenvolvem instrumentos para perscrutar o que anda pelos sistemas. Mas o auditor está sempre correndo atrás. O criminoso está sempre à frente da polícia, desenvolvendo técnicas e mecanismos que demoram a ser descobertas e dominadas por quem trabalha para combatê-las.
Uma das normas, a NBCTG240(R1) tem como objetivo especificamente falar sobre a responsabilidade do auditor em relação à fraude. E a norma logo (item 4) relembra que a principal responsabilidade pela prevenção e detecção da fraude é da governança da própria empresa. Quando essa governança falha tudo pode acontecer, e o auditor pode ser a próxima vítima. O item 5 lembra que há sempre um risco inevitável de que distorções relevantes aconteçam, mesmo com cumprimento das normas de auditoria; como dito, o criminoso está sempre à frente.
Agora, as normas todas de auditoria, desde a análise da consistência e robustez dos sistemas de controle interno, até a verificação física da existência de bens, a confirmação de saldos com devedores e credores, a checagem das práticas adotadas etc. etc. precisam ser rigorosamente cumpridas pelo auditor. Isso é que não pode, em hipótese alguma, deixar de ser cumprido. E falhas têm existido? Alguns casos públicos inclusive confirmam, infelizmente, algumas dessas situações.
O conjunto de procedimentos de auditoria e sua efetiva prática é ao mesmo tempo o instrumento de trabalho para obtenção das conclusões do auditor e o seu instrumento de defesa no caso de ter sido ludibriado, ou então a prova de sua desídia.
Por isso, antes de acusar o auditor é preciso confirmar a efetiva aplicação por parte dele de todas as normas formalmente estabelecidas pela legislação e a aplicação dos esforços necessários à eliminação das dúvidas relevantes. Se ele as tiver aplicado, não poderá ser penalizado, como já ocorrido em muitos e muitos casos. Se não houver cumprido diligentemente com sua obrigação profissional, aí deverá pagar por seus erros.
Assim, esperemos primeiro pelos trabalhos de averiguação dos órgãos competentes para depois, se for o caso, culparmos de fato os auditores.
fiscal — Foto: Getty Images.
(*) Eliseu Martins é professor Emérito das FEAs da USP de São Paulo e Ribeirão Preto.