https://valor.globo.com/legislacao – 22/12/2022.
Por Thais Folgosi Françoso e Lia Calder do Amaral.
A Lei nº 14.457/2022 deve ser celebrada por exigir que as empresas implementem mecanismos voltados à proteção das mulheres.
A cada semana são noticiados novos casos de assédio (sexual ou moral) contra mulheres dentro de ambientes corporativos. Para além das situações estarrecedoras relatadas pelas vítimas, o cenário traz uma importante e necessária reflexão: quão eficientes são os canais de denúncia e os mecanismos de compliance existentes para garantir a efetiva proteção das mulheres no ambiente corporativo?
O presente artigo trata da questão de gênero de forma ampla, sem se ater aos demais marcadores sociais como raça, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, idade, classe social, que certamente oferecem mais camadas de opressão e violência para mulheres interseccionais.
A Lei nº 14.457/2022 deve ser celebrada por exigir que as empresas implementem mecanismos voltados à proteção das mulheres.
Segundo a pesquisa “Percepções sobre Violência e Assédio contra Mulheres no Trabalho’’, do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Instituto Locomotiva, 76% das pessoas do gênero feminino já sofreram assédio no ambiente laboral. Quando a pergunta é sobre ter recebido convites para sair ou insinuações constrangedoras, essa fatia é de 39% – trinta e nove pontos percentuais acima dos homens que respondem positivamente. A diferença entre mulheres e homens que declaram ter sido elogiados de forma constrangedora por pessoas do gênero oposto sobre sua aparência física é de 28 pontos, elas com 36% e eles com 8%.
Partindo da pesquisa que revela maior exposição das mulheres a casos de assédio e sabendo da dificuldade e complexidade de se identificar e investigar os casos desse tipo, é imprescindível que os mecanismos de compliance estejam adequados a prevenir, detectar e remediar tais situações.
Vale lembrar que a Lei nº 14.457, de setembro de 2022, trouxe a obrigatoriedade das empresas adequarem seus programas de compliance, até março de 2023, com medidas relacionadas à prevenção e ao combate ao assédio sexual e às demais formas de violência no âmbito do trabalho, como por exemplo: (i) criação de regras de conduta a respeito do assédio sexual; (ii) definição de procedimentos para recebimento e acompanhamento de denúncias, garantindo a apuração dos fatos e aplicação de sanções administrativas aos responsáveis; (iii) e realização de treinamentos periódicos para orientação e sensibilização dos empregados e empregadas de todos os níveis hierárquicos da empresa.
Além disso, é imprescindível que as empresas aumentem a representatividade feminina nos comitês de compliance, nas equipes que recepcionam denúncias e na condução de investigações internas. Como bem destacou a antropóloga Ochy Curiel, “não estou dizendo que apenas quem sofre certas opressões é capaz de entender e investigar as realidades que afetam outras pessoas, mas digo que existe um privilégio epistêmico importante de ser considerado na produção de conhecimento. Isso significa que a subalternidade precisa deixar de ser objeto e passar a sujeito do conhecimento”.
Parece claro que o repertório de cada um, construído a partir de sua história de vida, convicções e experiências pessoais funciona como uma lente que incide sobre análises e leituras e, portanto, interfere nas escolhas e julgamentos.
Percebendo as distorções sociais relacionadas especialmente a gênero, em 15 de fevereiro de 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Recomendação nº 128/22) com o objetivo de que o Judiciário julgue sob a lupa de gênero, reconhecendo a influência que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas exercem na produção e aplicação do direito. O objetivo do protocolo é avançar na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade de gênero garantidas pela Constituição Federal.
A exemplo do Judiciário, os sistemas de compliance, em todas as suas instâncias, também precisam estar atentos aos diversos e representativos grupos sociais, bem como para as desigualdades e sistemas de opressão que estão presentes em nossa sociedade e, consequentemente, dentro dos ambientes corporativos.
Nesse sentido, a pluralidade de vivências e existências dentro dos sistemas de compliance por meio de equipes diversas indica um bom caminho para análises justas e calibradas, podendo configurar um potente indutor de uma cultura organizacional mais inclusiva e alinhada ao discurso de respeito e proteção de todas as pessoas dentro das organizações.
A diversidade (que inclui a diversidade de gênero) é hoje uma exigência de mercado, impulsionada pela pauta ESG – Enviromental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança Corporativa), que é o grande desafio da sociedade contemporânea. As empresas, portanto, precisam estar preparadas não só para incluir e promover a igualdade entre homens e mulheres, mas também para proteger efetivamente as mulheres dentro desses ambientes, por meio de sistemas eficientes de compliance, com adequados instrumentos para prevenção, detecção e remediação de condutas opressoras e que afrontam o direito das mulheres.
Nesse sentido, a Lei nº 14.457, de 2022, deve ser celebrada, na medida em que exigiu que as empresas implementem mecanismos voltados especialmente à proteção das mulheres e ao combate à violência nos ambientes corporativos.
Thais Folgosi Françoso e Lia Calder do Amaral são, respectivamente, sócia do FFLAW, professora do Insper e presidente da Comissão do direito das Mulheres do IASP; e diretora-executiva da consultoria 4CO, professora da formação em Diversidade da Fundação Cásper Líbero e integrante do Comitê de D&I da Abracom.
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