https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada – 17/07/2023.
Por Pilar Coutinho (*)
A reforma carrega em si o espelho da Câmara dos Deputados que a aprova, as mil contradições sociais do país que somos.
Qual o limite do aceitável de privilégios e de benefícios em termos de tributação? Aliás, qual a diferença entre um privilégio e um benefício? Essa poderia ser uma questão primordial na nova fase da votação da reforma tributária, se ela não tropeçasse em duas pedras fundamentais: a história e a política real.
Na virada do dia 06 de julho de 2023 para 07 de julho de 2023, uma reforma tributária do consumo foi aprovada na Câmara em um ritmo tão frenético que muitos profissionais tomaram seus cafés da manhã adoçados com incerteza e com uma sensação de “Deus nos acuda”. Os motivos foram vários.
Desde um uso generalizado da palavra “poderá” até a inclusão de tantos jabutis que confrontam a lógica geral da própria reforma.
Houve gente de extrema-direita que logo levantou o braço: essa é uma reforma socialista, aprovada sabe-se com o que passando por baixo das cortinas da Câmara dos Deputados. Outros disseram: se não foi ilegal, os fins justificam os meios. Outros viram o processo democrático, após anos de debate técnico realizado, a soma do conhecimento e experiência em muitas propostas frustradas, alcançar seu ápice numa votação relâmpago, sim, mas movida por um ímpeto de: agora ou nunca, com pautas típicas de direita (por exemplo, simplificação, crescimento econômico) e de esquerda (por exemplo, aumento da tributação do patrimônio, aceitação de alíquotas diferenciadas).
Claro, durante a votação – como sói acontecer – vimos esses rótulos se dissolverem na defesa do interesse próprio, como ficou claro nos diversos jabutis aprovados.
Também veio à tona nossa velha discussão sobre modelos de desenvolvimento. Um que entende que a proteção ao meio ambiente deve ser ampla, a permitir uma agressiva tributação por meio de imposto seletivo dos produtos prejudicais à saúde e ao meio ambiente. Outra que entende, como em muitos outros casos, que a previsão ficou muito genérica, o que poderia comprometer uma das nossas mais competitivas e tecnológicas atividades econômicas: o agronegócio.
Não negamos nosso coração religioso. Ao invés de voltarmos para um modelo mais laico, buscou-se expandir o tratamento diferenciado para as entidades religiosas, seja por meio de imunidade seja por meio de isenções. A condição econômica dessas entidades não teve uma relevância, assim como qualquer dose de prevenção de abusos. A votação atual refletiu uma votação passada: Deus continua acima de tudo, até da tributação.
A reforma tributária está ainda colorida com muitos “poderás”. E historicamente, como bem lembra meu colega Salusse na sua coluna, “poderá” no Brasil parece ser um comando aberto, um “estou chegando” de mineiro, algo mais para “talvez um dia” do que uma garantia.
Os administrativistas, claro, se arrepiam nos esqueletos, afinal, “poderá” para a administração pública contém um poder-dever. Na seara tributária, o verbo em questão sempre tropeçará na dificuldade de se costurar acordos a viabilizar a edição das leis complementares. Enquanto alguns apontam atônitos para a insegurança jurídica nascente (por exemplo: produtos relacionados à segurança e soberania nacional, produtos e insumos agropecuários e agrícolas), é se de perguntar se seria possível – em um texto constitucional – fugir totalmente da abertura semântica e da fluidez dos conceitos econômicos.
Nossa dança entre o futuro e o passado repetiu-se. Desde o prazo de transição alargado, até hipótese de voltarmos à discussão de que é um produto semi-elaborado, derivada do possível novo imposto residual estadual. Parece que os Estados mergulham na reforma, mas com boias nos braços.
Para os tributaristas, a reforma parece um milagre ou uma assombração. No campo dos milagres, o olhar quase chocado com a perspectiva real da sua aprovação. Da assombração, reflexões sobre a maturidade do nosso pacto federativo, o efetivo repasse de recursos e, agora, a inclusão de diversos jabutis que ferem a lógica geral da própria reforma.
Ao fim e ao cabo, a reforma carrega em si o espelho da Câmara dos Deputados que a aprova, as mil contradições sociais do Brasil que somos. Mas, o fato de que estamos atravessando o mar para a sua aprovação, revela também algo sobre o Brasil que queremos ser. “É o meu Brasil brasileiro, terra de milagre e assombro, de miséria e riqueza, de heróis-vilões, de vilões-heróis. De tributos e sustos.”
(*) Pilar Coutinho: Consultora tributária na HerreveldvandenHurk & Partners, professora e pesquisadora na PUC Minas, onde fez doutorado com período de investigação na ULisboa.