https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada – 13/07/2023.
Por Eduardo Salusse (Graduado e doutor em direito pela PUC/SP, mestre em direito tributário e responsável executivo de pesquisa do Núcleo de Estudos Fiscais na FGV Direito SP)
Na reforma tributária e nas alterações no Carf, a grande verdade é que todos os envolvidos agem racionalmente em busca dos seus próprios ganhos.
O período de turbulência legislativa está rodeado de narrativas (para usar a expressão da moda).
É um clássico conflito entre os que apresentam fundamentos bem construídos para defender uma posição ou outra, costurando articulados argumentos jurídicos ou econômicos para sustentar a sua vontade.
Não faço nenhuma acusação, mas levanto hipóteses que parecem revelar, ao menos em tese, incentivos à construção de narrativas para lá de suspeitas.
É preciso muita cautela nos debates e na aprovação de temas tão sensíveis.
Comecemos pelas alterações no Carf.
De um lado, os contribuintes com um recheado conteúdo argumentativo focado na necessidade de um órgão administrativo que exerça jurisdição, que não seja manipulado pelo órgão arrecadador, com julgadores imparciais e independentes, pregando que o empate é expressão da dúvida e deveria beneficiar o acusado.
De outro lado, entidades sindicais e associações de auditores, além do próprio quadro do funcionalismo fazendário, defendendo a volta do voto de qualidade, vez que a entidade não é jurisdicional e que é injusto que somente o contribuinte vencido possa ir ao Judiciário, tecendo argumentos sombrios relacionados à suspeição e a supostos ilícitos por parte dos representantes dos contribuintes.
Não fosse o desejo de vencer a lide por parte de ambos, cancelando uma dívida ou aumentando a arrecadação, respectivamente, poderíamos acreditar na tecnicidade pura dos argumentos.
Outro exemplo. A Procuradoria da Fazenda Nacional insurge-se contra o artigo 8º do projeto de lei do Carf que regulamenta nova hipótese de transação.
Na perspectiva da PFN, argui-se que apenas a ela cabe tal competência outorgada pela Constituição Federal.
De outro lado, a Receita Federal do Brasil pretende avocar tal competência a pretexto de ajudar por fim aos litígios e permitir o aumento da arrecadação.
Não fossem os componentes do bônus de eficiência, de um lado, e dos encargos (honorários sucumbenciais), de outro, poderíamos até acreditar na franqueza dos argumentos.
Mais um. A reforma tributária é muito ruim, a pior que já se viu. A reforma tributária é muito boa, com potencial de ser a melhor do mundo.
Será que são mesmo estas as verdadeiras razões verbalizadas por diversos grupos? Poderiam até ser, não fosse o apoio patrocinado da indústria em campanhas de TV, que não coincidentemente verá os seus produtos desonerados ou, de outro lado, as críticas jurídicas dos serviços que serão significativamente onerados. O mesmo raciocínio para Estados e Municípios, ganhadores e perdedores, que gritam problemas legais na proposta aprovada na Câmara dos Deputados.
É por tal razão que os parlamentares, representantes do povo, munidos de experiência e de grande assessoria deveriam discutir de maneira absolutamente técnica. Mas será que o fazem? Não fosse a liberação de alguns bilhões em emendas para contaminar a análise fria do tema, poderíamos até acreditar.
A grande verdade é que todos os envolvidos agem racionalmente em busca dos seus próprios ganhos.
Cada um maximiza os ganhos que lhes interessam. Os empresários visam o próprio lucro. A Fazenda apenas a arrecadação. O contribuinte quer a utilidade dos bens e serviços. Os políticos querem maximizar os seus votos. O Direito mira a legalidade.
Tudo isso faz parte da natural racionalidade do ser humano que, egoisticamente, age em interesse próprio.
Mas é fato que, ao tecer narrativas por vezes dissimuladas em interesses próprios, acabam por provocar debates, reflexões e melhorias a todos. Todas estas mentiras sinceras nos interessam.
E diferentemente do que completa a música interpretada por Cazuza, não podemos esperar pequenas poções de ilusão.
Os novos rumos legislativos fiscais devem pautar-se na ciência e na experiência, com a devida isenção. Ao menos esta ilusão parece ser real.
Deputados comemoram aprovação da reforma tributária em primeiro turno — Foto: Lula Marques/Agência Brasil.