valor.globo.com – 26/05/2020.
Por Edison Fernandes.
A utilização de termos técnicos deve ser rigorosa quanto ao seu conceito, sob pena de gerar confusão e até conflitos.
Um dos efeitos mais comuns da Covid-19 no balanço patrimonial das empresas é o reconhecimento da inadimplência, seja a efetiva seja a potencial (estimada). Trata-se dos créditos (ativos) não recolhidos no prazo de vencimento, que implica redução patrimonial da pessoa jurídica, acarretando a escrituração de uma despesa.
Tempos atrás, essa conta redutora do ativo foi denominada de “provisão para devedores duvidosos”, a famosa PDD. Na onda do politicamente correto, essa conta teve seu nome alterado, haja vista que quem é duvidoso não é o devedor, mas a liquidação do crédito, ou seja, o pagamento do valor representado, normalmente, por algum título de crédito. Então, esse ajuste no ativo passou a ser conhecido como “provisão para crédito de liquidação duvidosa”, ou PCLD.
Ocorre que, conquanto compreensível que se trata de reconhecimento contábil da inadimplência – efetiva ou potencial (estimada) –, a referência ao termo “provisão” gera confusão, especialmente entre os advogados. E a falta de entendimento desse instituto juscontábil – e de qualquer outro termo técnico – pode provocar discussões, disputas e, por vezes, até litígio judicial. Portanto, é importante que, além da obediência ao politicamente correto, busque-se a conformidade com o tecnicamente correto.
Como, então, aceitar uma provisão para inadimplência? Em primeiro lugar, não há risco de desembolso de caixa, porque, na verdade, há risco de não ingresso de recursos no caixa, situações diferentes e com efeitos diversos. Depois, o risco de inadimplência não está atrelado a um acontecimento ocorrido (presente). Ainda, o reconhecimento da inadimplência se verifica geograficamente no lado esquerdo do balanço patrimonial, ou seja, no ativo (ainda que como redutora). Finalmente, até o evento futuro e incerto que aparentemente aproximaria os dois institutos são distintos na sua essência: na provisão, atua um terceiro (juiz, por exemplo), na inadimplência, o próprio devedor (cliente).
De acordo com as normas juscontábeis, “provisão” é uma espécie de passivo, vale dizer, uma obrigação presente com provável desembolso de caixa (isto é, pagamento). Por “obrigação presente” deve ser entendido que se trata de uma dívida (ainda que provável e não certa) cuja causa já ocorreu; e “provável” significa ausência de liquidez e certeza, em razão da dependência de um evento futuro e incerto para a sua concretização ou definição do montante devido. Por exemplo, a provisão para contingência trabalhista decorre do contrato de trabalho já executado (obrigação presente) cuja decisão desfavorável (perda) é mais provável de acontecer do que a decisão ser favorável à reclamada (risco provável). Geograficamente, a provisão é registrada do lado direito na parte de cima do balanço patrimonial (passivo).
A semelhança entre a provisão e a inadimplência é o impacto no resultado: ambos os registros provocam o reconhecimento de uma despesa. No entanto, isso ocorre por fundamentos distintos, sendo que na provisão, há aumento de passivo e na inadimplência, a redução de ativo.
Em conclusão, tecnicamente, o reconhecimento do risco da inadimplência não se caracteriza como provisão. Por esse motivo, convém adaptarmos a denominação para, simplesmente, “crédito de liquidação duvidosa” ou “crédito estimado de liquidação duvidosa”. Do contrário, além do conflito jurídico para o recebimento dos valores envolvidos, geramos conflito também de informação.
(Artigo em homenagem ao professor Ariovaldo dos Santos)