Matéria originalmente publicada no VALOR ECONOMICO em Abril de 2016.
Profissionais que têm algum envolvimento direto ou indireto com contabilidade tiveram que lidar – e ainda lidam até hoje, na verdade – com a difícil mudança cultural que foi trocar um ordenamento calcado no direito codificado por um modelo em que a essência econômica prevalece sobre a forma jurídica, como é o caso do padrão contábil IFRS, que tem sua origem na Inglaterra, berço do “common law”, ou o direito dos costumes.
Em outras áreas, como na tributária, existe a convivência entre os dois sistemas. Embora como regra geral seja apegada à forma, a Receita Federal tem desconsiderado transações jurídicas quando elas têm como objetivo apenas reduzir a base tributária, por exemplo. Até mesmo no direito societário o pêndulo tem oscilado.
Como a tradição jurídica do país é de “code law”, e sem uma migração total de uma modelo para o outro, como foi na contabilidade, é comum ver desconforto e sentimento de insegurança jurídica quando se percebe que ora prevalece a forma, ora a essência.
Em artigo publicado na edição de fevereiro da revista “Capital Aberto”, o professor Eliseu Martins descreveu com maestria um caso ocorrido no “Maravilhoso Parque dos Pedalinhos”, que revela como foi possível, lá, o governo se financiar via bancos públicos, sem que isso fosse considerado uma operação de empréstimo, o que era proibido pela lei local.
Não fosse em outro país, o exemplo descreveria perfeitamente uma prática adotada ao longo de anos pelos governos no Brasil, em volume pequeno, e que foi usada de forma exponencial pela presidente Dilma Rousseff (PT) durante seu primeiro mandato.
O Tesouro atrasava (em sigilo) ou adiava (formalmente) pagamentos aos bancos públicos, que antecipavam os recursos para diversas finalidades. A dívida do Tesouro era contabilizada por essas entidades como contas a receber e sobre os valores incidiam juros. Formalmente, contudo, nunca foi assinado contrato de empréstimo, o que era expressamente vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Embora essas operações já somassem R$ 8 bilhões em 2010, R$ 13 bilhões em 2011, R$ 20 bilhões em 2012 e R$ 36 bilhões em 2013, foi apenas em meados de 2015, ao se debruçar sobre as contas de 2014, quando o saldo alcançou R$ 52 bilhões, que o Tribunal de Contas da União concluiu que, embora sem contrato de crédito assinado, na essência havia uma operação de empréstimo. E recomendou a reprovação das contas apenas daquele ano ao Congresso, que ainda não se manifestou.
É difícil discutir que, na essência, seja um empréstimo ao controlador. Mas talvez haja espaço para questionamento sobre como tratar o passado.
Vejamos. Os contratos de leasing existem há décadas. E sua forma jurídica, que de certa forma esconde a existência de um financiamento, permitiu durante muitos anos que empresas deixassem dívidas enormes fora do balanço.
Quando se chegou ao entendimento de que a maneira de contabilizar deveria privilegiar a substância econômica, ninguém puniu empresas, contadores e auditores pelas práticas do passado, já que eles seguiam o entendimento vigente até então.
Passemos então a dois outros casos de essência x forma, esses ligados à Operação Lava-Jato. O primeiro é do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), que está sofrendo processo de cassação de seu mandato no conselho de ética da Casa.
A acusação nessa esfera – a menos grave que pesa contra ele, diga-se – diz que mentiu, sob juramento na CPI da Petrobras, quando afirmou que não tinha conta no exterior.
Quando autoridades da Suíça enviaram documentos revelando que o deputado teria ao menos US$ 5 milhões em seu nome e de sua mulher naquele país, Cunha se defendeu dizendo que se tratam de “trusts”, e que “trusts” não são contas.
Primeiro, há “trusts” e “trusts”. Alguém pode ser beneficiário de um deles que tenha regras restritas de movimentação – somente em caso de herança, por exemplo – e nem saber disso.
Mas os “trusts” de Cunha foram criados por ele mesmo e podem ter os valores resgatados a qualquer momento.
Na forma, não são contas bancárias. Na essência, funcionam como tal.
Numa perspectiva mais abrangente da luta entre forma e essência, Cunha será julgado por mentir ou omitir os “trusts” (e omissão também consta do regimento como causa para cassação), ou por ter esse dinheiro suspeito e não declarado fora do país (e o Banco Central exige declaração inclusive de “trusts”), com alegação de que obteve os recursos por venda de carne para a África na década de 1990?
O segundo caso ligado a Lava-Jato é o do sítio de Atibaia. A escritura, que tem fé pública, está nos nomes de Jonas Suassuna e Fernando Bittar, este último amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Tomando por base a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público, se tivesse que preparar seu balanço patrimonial à luz do IFRS, Lula não teria como registrar o sítio como um ativo imobilizado seu.
Ele não tem poder legal para vender a propriedade, e os recursos oriundos de uma possível alienação no futuro não iriam para sua conta.
Por outro lado, ele tem a chave do sítio, é o real usuário da propriedade e se beneficiou diretamente das reformas que foram custeadas pela Odebrecht e por José Carlos Bumlai e que começaram um ou dois meses antes do fim de seu segundo mandato, em 2010.
No mínimo, um ativo intangível de “direito de uso” o ex-presidente teria que contabilizar. E um ativo que surge do “nada” precisa antes ser registrado como ganho na demonstração de resultados. Se fosse apenas do amigo, sem problemas. Mas como a reforma foi custeada por uma fornecedora de serviços do governo, parece haver elementos para se alegar vantagem indevida, o que seria improbidade administrativa.
Chega-se então ao caso do impeachment. A primeira acusação contra Dilma, do ponto de vista jurídico, se refere à edição de decretos de suplementação orçamentária. Na prática, a participação da presidente é apenas colocar sua assinatura nos atos, depois de eles passarem por inúmeras áreas técnicas. Sob o aspecto formal, contudo, ela tem responsabilidade por ter assinado tais decretos.
Já a segunda acusação trata de “pedaladas” referentes ao plano safra do BB, as únicas que teriam continuado em 2015, já no segundo mandato (embora antes do julgamento do TCU). Formalmente, é o Conselho Monetário Nacional e o Ministério da Fazenda que respondem juridicamente pelos pagamentos ao BB. Na essência, Dilma não deixa de ter poder sobre esse fluxo.
Mas mais importante ainda: na forma, a presidente é processada com acusação de que os decretos e as “pedaladas” do plano safra são crime de responsabilidade. Na essência, sua saída não tem nada a ver com isso.
Fernando Torres é repórter de S.A.