VALOR 18/03/2024
Por Toni Sciarretta — São Paulo.
Trabalho consiste em preparar governança e fundamentar ‘valuation’ das captações.
Inicialmente administrada por veterinários do Sergipe, a gestora de planos de saúde de animais de estimação Plamev Pet passou por diversas rodadas de investimentos e chegou a considerar fazer um IPO (oferta inicial de ações) na B3 para financiar sua expansão em território nacional. Acabou desistindo diante dos custos proibitivos da operação, que apenas com auditores levariam perto de R$ 2 milhões, inviabilizando uma captação pequena. No ano passado, no entanto, a Plamev conseguiu levantar R$ 5,4 milhões com a oferta de ações no formato “tokenizado” na BEE4, plataforma de negociação que faz parte do “sandbox” regulatório da Comissão de Valores Mobiliáros (CVM) e que tem uma série de dispensas de exigências regulatórias para permitir captações de empresas e tíquetes menores do que no mercado de capitais tradicional.
Uma das novidades em relação às tentativas anteriores de viabilizar o lançamento de ações de empresas menores, como Bovespa Mais, é a figura do chamado “consultor de listagem”, inspirado na experiência dos “nominated advisors” – os “nomads” do mercado de acesso da bolsa de Londres. Os consultores atuam como uma espécie de “coach” e fazem o papel de um banco de investimento na preparação da empresa para receber o público investidor. Eles ajudam a companhia a adaptar a governança, fundamentar o “valuation”, revisar a contabilidade, investigam os passivos judiciais e tributários e, finalmente, encaminham a documentação do pedido de listagem para aprovação final do comitê de listagem da BEE4.
O primeiro consultor credenciado pela BEE4 foi a Diligia, startup de auditoria tocada pelo contador Willian Bezerra, especialista em empresas familiares e agora em startups e fintechs. A Diligia conduziu as listagens das três primeiras empresas da plataforma – Engravida, de reprodução assistida; Mais Mu, de produtos alimentícios saudáveis e para esportistas; e a Plamev, do setor pet.
A Diligia surgiu no ecossistema do Inovabra, “hub” de startups do Bradesco, local em que o empreendedor tomou contato com o mundo das startups, a maioria carente de formalização de processos administrativos. A maioria delas, conta Bezerra, coloca toda a energia das equipes para escalar e ganhar mercado, deixando para trás processos administrativos mais burocráticos, como conformidade e tributação, que mais tarde se tornam custosos.
“Algumas empresas estão em fase de maturação dos controles. Empresa é como criança. Conforme cresce, vai trocando a roupa.”
O Brasil tem cerca de 350 mil empresas de pequeno e médio portes carentes de recursos para expandir suas operações, segundo o Sebrae, serviço de apoio ao setor. Desse total, apenas uma minoria tem condições de atender os requisitos mínimos para abrir capital ou passar por uma diligência para receber dinheiro de fundos de participações (“private equity” ou “venture capital”).
“Startup, muitas vezes, não está inventando nada, está criando algo melhor, mais rápido e mais acessível. Tem uma ótima ideia, só que não tem dinheiro. Os empreendedores se surpreendem com a quantidade de informações que precisam fornecer e com os controles que devem adotar. Quanto mais cedo se prepara, mais rápido tem condições de entrar em rodadas mais sofisticadas de investimentos. Começa o preparo para um dia abrir o capital.”
A consultoria Auddas, butique de fusões e aquisições (M&A) e reestruturação de empresas, também se tornou consultora de listagem da BEE4. Segundo Marco França, sócio da Auddas, o trabalho complementa a estratégia da consultoria para o segmento de pequenas e médias empresas (PMEs). “Além de contribuir com o ingresso de PMEs no mercado de capitais, nos possibilita apresentar novas oportunidades de negócios para toda uma gama de clientes, como fundos de venture capital, ‘early stage’ [estágio inicial] e private equity”, disse.
Além de revisar os documentos e submeter o pedido de listagem, os consultores trabalham no plano comercial junto com as corretoras que vão fazer a distribuição das ações no formato tokenizado para diferentes públicos e clientes. Nessa tarefa, o ecossistema da BEE4 iniciou a distribuição por canais de terceiros além do próprio.
“Achávamos que só consultorias financeiras, butiques de M&A, e escritórios de advocacia que já fazem parte desse negócio teriam interesse em se tornar consultor de listagem. Mas vimos que mesmo participantes de histórico no mercado tradicional se interessaram”, disse Caio Azevedo, sócio da BEE4.
É o caso da Genial (antigo Brasil Plural), que já fez R$ 185 bilhões em operações tradicionais de banco de investimento e no fim do ano passado decidiu se tornar tanto consultora de listagem para IPO quando distribuidora de tokens de ações para os clientes da corretora.
Até o fim do ano passado, esse trabalho era feito apenas pela Beegin, canal de distribuição do mesmo grupo da BEE4, que foi autorizado pela CVM a atuar como o primeiro intermediário conectado a esse ecossistema para levar as ações tokenizadas ao público investidor.
Segundo Bruno Bandiera, chefe de ativos digitais da Genial, a adesão ao mercado de ações tokenizadas surgiu de uma demanda dos próprios clientes do grupo, que não tinham interesse ou escopo para uma operação na B3, mas que também não se encaixavam nas regras do “crowdfunding” (de financiamento coletivo), voltado a empresas com faturamento de até R$ 40 milhões em captações de até R$ 15 milhões – a BEE4 tem limite de até R$ 100 milhões.
“No Brasil, nenhuma das iniciativas teve muito andamento e conseguiu ganhar escala. Uma das razões por que o Bovespa Mais não decolou são os custos e os requisitos de informações que, apesar de serem direcionados para pequenas listagens, ainda é muito alto. É uma régua tão alta para as empresas efetuarem essas listagens que, no limite, não conseguiam gerar ganhos suficientes que justificassem as custas de fazer uma operação no mercado de capitais”, disse.
Desde os anos 90, o mercado de capitais brasileiro fracassou em diversas tentativas para viabilizar o financiamento de empresas de menor porte por meio de oferta de ações, dinheiro visto como mais barato em relação à dívida dado o compartilhamento de risco de sucesso dos negócios. No caminho ficaram projetos como o da Sociedade Operadora do Mercado de Capitais (Soma), da antiga Bolsa do Rio, e mesmo o Bovespa Mais, que tem apenas 12 empresas listadas. Os problemas apontados são os custos da operação, estimados em cerca de 5% para as captações de maior tíquete – e depois de “observância”, para cumprir as exigências do mercado tradicional.
Após uma série dessas tentativas fracassadas de programas para levar empresas menores na bolsa, startups e companhias de alto potencial de crescimento encontraram na “tokenização” uma possibilidade de captar recursos do público investidor de forma econômica e facilitada.
A tecnologia blockchain, comumente utilizada pelos ativos digitais, da BEE4 permite negociar tokens de ações e fazer simultaneamente os registros de titularidade dos ativos – operações que na infraestrutura tradicional ocorrem de forma separada, podendo envolver diferentes prestadores de serviço.
Quando o real digital estiver disponível, a BEE4 fará inclusive a compensação financeira dos valores, etapa hoje processada de forma analógica por meio de transferência de recursos. A operação é simples: uma troca (“swap”) do token representativo de um ativo financeiro – no caso, uma ação – pelo real tokenizado do Drex, cada um com os devidos registros, previamente programados.
Entre as dispensas regulatórias concedidas pela CVM para a BEE4, as empresas só precisam de um ano de contabilidade auditada (na B3, são três anos), não necessita ter conselheiro independente nem diretor estatutário de relações com investidores.
O foco são empresas com faturamento entre R$ 10 milhões e R$ 300 milhões por ano e as ofertas podem alcançar R$ 100 milhões. Até hoje, as captações não chegaram a R$ 10 milhões. A Engravida levantou R$ 4,2 milhões, ainda em esquema de crowdfunding, enquanto a Mais Mu obteve R$ 4,13 milhões.