Por Gleise de Castro – 25/11/2013 às 05h00.
Aprovada este ano, a Lei 12.846/2013, conhecida como lei anticorrupção, deve ajudar a fortalecer o debate sobre a postura ética nas empresas, segundo consultores. Ela entra em vigor em fevereiro de 2014. Mas mudanças neste sentido já vêm sendo observadas há algum tempo.
A origem desse processo de busca por mais transparência no mercado internacional se deu há mais de uma década, impulsionada pelos escândalos corporativos que marcaram o fim do século XX e início do XXI, como o emblemático caso da Enron, gigante americana de energia, e começou a chegar ao país com as políticas globais das multinacionais para promoção da ética em suas atividades. No meio empresarial brasileiro, uma pesquisa do Comitê Temático FNQ: Ética Empresarial, realizada pelo Ibope Inteligência, com apoio do Senai, em janeiro e fevereiro de 2010, realizada com 25 presidentes ou diretores de grandes empresas selecionadas, indicou que os primeiros passos já foram dados. Apesar de ser recente em muitos casos, a implantação de políticas de conduta ética nesse universo de companhias é considerada irreversível pela maioria dos consultados.
Quase todas as empresas responderam ter pelo menos um documento formal de orientação, como código de conduta, de compliance ou de ética. Cerca de metade das empresas consultadas adota processos formais há pouco tempo, entre três e seis anos, segundo o livro “Ética Empresarial”, da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ). Nas demais, a maior parte das respostas aponta para um período entre 12 e 20 anos. Poucas os adotam há mais tempo, entre 30 a 45 anos.
Os temas mais comuns tratados nos códigos são corrupção ativa e passiva, incluindo convites, brindes e presentes, regras de convivência, assédio, direitos do trabalhador, proteção de ativos da empresa, comunicação institucional e representação. Segundo a FNQ, a pesquisa permite concluir que, embora relativamente atrasada, a discussão ética nas empresas brasileiras “chegou com força e rompendo paradigmas”. Outra pesquisa da FNQ, feita entre 20 de abril a 21 de maio de 2010 pelo Senac, com apoio do Sebrae, mostrou que organizações de micro e pequeno porte também procuram adotar condutas éticas. De 989 consultadas, escolhidas entre as 15 mil empresas participantes do Prêmio MPE Brasil, 79% disseram que a ética é fundamental nos negócios.
Para Regina Ribeiro do Valle, coordenadora do grupo de ética empresarial da FNQ, já são notados avanços na atuação das empresas, principalmente por pressão externa. “A informação não é mais privilégio de alguns e, onde quer que atuemos podemos ser vistos e avaliados; essa transparência obrigou os colaboradores a não mais agir de modo escuso”, diz Regina.
As responsabilidades da alta direção também estão ficando mais claras e passaram a ser fiscalizadas e cobradas pelos funcionários. “O nível de exposição exigido dos diretores hoje é muito maior e os pedidos de explicação, mais frequentes”, afirma. O mundo digital tem peso importante nessa mudança, com a disseminação da informação em blogs e redes sociais.
“Valores éticos não são abstratos. São padrões de comportamento práticos do dia a dia, que demonstram a boa escolha dos colaboradores ao cumprir o papel que lhes foi atribuído”, define a coordenadora de ética da FNQ. Não se trata de obediência às leis e regulamentos, já que essa conduta é esperada de qualquer cidadão em sua atividade individual e corporativa, mas da resolução de dilemas a que todos estão sujeitos. “São decisões sobre quais ferramentas escolhemos e os caminhos que traçamos e como atingimos nossas metas utilizando essas ferramentas e caminhos. São também decisões sobre como nos relacionamos com os demais e de que modo devemos atuar para o bem da empresa e demais stakeholders.”
O conjunto de posturas, determinado pelos sócios fundadores, deve ser transmitido pela alta direção a todos os funcionários. Os administradores são os guardiões dos valores e sua conduta é o exemplo a ser seguido por todos. Os princípios éticos são listados nos sites e catálogos das companhias, onde descrevem sua missão, visão e valores. Mas, se não são praticados pela alta direção, tornam-se vazios. “Se uma empresa diz valorizar o compromisso com a verdade, mas seus diretores mentem, qualquer funcionário percebe”, diz Regina.
A Solvay criou um canal para os funcionários encaminharem denúncias, o Speak Up
A implementação dos valores na empresa requer atuação coordenada, para que eles sejam divulgados e praticados. Segundo a coordenadora de ética da FNQ, os departamentos de recursos humanos e comunicação costumam ser os responsáveis pela transmissão dos valores. Como gestores da ética, devem divulgá-los a todos os empregados, reunir os princípios em um código e criar políticas de treinamento contínuo para todos os níveis. Eles também são encarregados de receber denúncias, coibir comportamentos inadequados e submeter casos mais graves de irregularidade a um Comitê de Ética.
É nos pequenos detalhes que o comportamento ético, ou antiético, se revela. Arredondar o valor do táxi, para ficar com o troco, forçar a contratação de uma pessoa amiga ou, em vez de fazer três orçamentos para a contratação de um serviço, optar por uma empresa simpática, que costuma presentear clientes, são condutas comuns no cotidiano de muitos funcionários e geralmente não consideradas antiéticas. Por isso, é necessário o treinamento constante. “O treinamento é necessário porque é por meio da exposição sobre práticas e exemplos, assim como de exercícios e explicações, que os colaboradores irão entender e adotar tais valores”, diz Regina. O objetivo é reavivar essa postura, para que os funcionários percebam os valores no dia a dia.
A CPFL Energia adota um código de ética desde 2000. Revisto em 2006 e 2013, ele formaliza os compromissos éticos do grupo. “Ele explicita nossa responsabilidade perante parceiros, acionistas, funcionários, fornecedores e clientes. É um guia que orienta as ações de nossos profissionais”, diz o diretor de comunicação empresarial e relações institucionais da CPFL Energia, Augusto Rodrigues, também representante do Comitê de Ética do grupo CPFL.
Os valores são transmitidos no momento em que o funcionário ingressa na empresa, quando recebe o código e passa por uma leitura orientada, em reuniões a cada ano e meio ou dois, com grupos de 150 a 200 pessoas, em que se discute o que é correto fazer, inclusive nas redes sociais, e pela intranet. Nos encontros e pela rede interna, os funcionários indagam, por exemplo, se é correto receber presentes, aproveitar o carro da companhia para levar a mulher ao médico e aceitar convite para palestras.
“Com nosso sistema de gestão e desenvolvimento da ética, queremos fortalecer em nossos profissionais atitudes e comportamentos responsáveis”, diz Rodrigues. Segundo ele, trata-se de um desafio para a diretoria da empresa. São cerca de 110 executivos no país administrando as atividades de 8 mil profissionais, na maioria técnicos e engenheiros, que trabalham sozinhos, fazendo reparos e instalações. “Fazemos um enorme esforço para incluir entre os critérios cotidianos desses profissionais um critério de natureza ética”, afirma.
Os clientes também podem denunciar mau atendimento ou pedido de propina por parte de funcionários diretos ou terceirizados. O Comitê de Ética reúne-se uma vez por mês, analisa as reclamações e, em caso propina, considerada denúncia grave, chega a demitir o funcionário.
Nos processos de fusão e aquisição, o desafio é a junção dos valores das companhias envolvidas. Na fusão entre a Serasa e a irlandesa Experian, realizada em junho de 2007, não houve muito problema, segundo Rogéria Gieremek, gerente executiva de compliance da empresa para a América Latina. “A ética já fazia parte do dia a dia da Serasa, uma empresa sempre muito correta com clientes, fornecedores e funcionários. A Experian influenciou positivamente, ajudando a estruturar políticas de promoção da ética”, diz Rogéria. A irlandesa trouxe para o país seu código global de ética e suas políticas anticorrupção.
Segundo Rogéria, o código é pequeno e claro. “Não pode haver conflito de interesses e a empresa não aceita, não paga e não admite que qualquer funcionário faça o pagamento de qualquer tipo de propina”, afirma. A empresa também deixa claro que, se o funcionário se envolver em tais práticas, não contará com sua defesa. “Essas políticas são marteladas o tempo todo, por e-mails, boletins semanais e outros canais de comunicação interna.”
Os 2,5 mil funcionários da Serasa Experian também participam de atividades como a semana de compliance, em que atividades lúdicas tornam mais leve a compreensão das políticas anticorrupção, de presentes e hospitalidade. Para o setor privado, o valor-limite de presentes, tanto para dar quanto para receber, é alto, de R$ 250. Mas para setores e órgãos governamentais é zero. Admite-se uma caneta ou chaveiro com logo da empresa, ou seja, algo sem apelo econômico. Qualquer coisa além disso precisa de aprovação do diretor da área e vai para a diretoria de compliance. Os limites são globais.
Segundo a executiva, os profissionais de compliance estão sendo muito procurados e as empresas que não estiverem preparadas para as exigências dos clientes vão perder contratos e ficar fora do mercado. “As empresas não podem contratar companhias que não tenham compliance”, diz. A Serasa Experian, assim como outras, faz due diligence das empresas com que se relaciona, ou seja, escrutina não só sua saúde financeira, mas também suas posturas éticas. “Estamos todos debaixo de uma lupa”, diz Rogéria. “Temos de mudar essa história do ‘jeitinho’ brasileiro.”
Para Rodrigues, da CPFL, a empresa também já está preparada para a nova lei, pois está listada nos mais elevados níveis de governança na BM&F Bovespa (Novo Mercado) e na Bolsa de Nova York (com ADR nível III). “A compliance faz parte disso, com estrutura robusta de avaliação dos controles internos em dois níveis – controles corporativos, com regras de diretrizes masters, como Código de Ética e de Conduta Empresarial, e controles nos processos de negócio, como contratação de energia, tesouraria e captação de recursos”, diz o executivo. Para ele, com a nova lei, as empresas tendem a criar ou ampliar a atuação da área de compliance. “As instituições que quiserem se blindar deverão ter códigos de conduta empresarial e reforçar esses conceitos entre seus colaboradores rotineiramente.”
No Itaú, comissão responde dúvidas sobre sociedade em empresas e convites para lecionar
Para Osni de Lima, presidente do grupo Solvay na América do Sul, que adquiriu o grupo Rhodia dois anos atrás, a nova lei chega em um momento “extremamente oportuno”, fortalece as empresas que já têm uma postura ética enraizada e incentiva as que ainda não têm a buscar um nível de excelência ética. “Não li os detalhes da lei, mas tenho certeza que cobrimos o que ela estabelece como corrupção. Os princípios éticos já estavam presentes na cultura das duas empresas, bem antes da aquisição.”
A unificação dos valores da Solvay e da Rhodia, segundo Lima, foi facilitada pela similaridade entre as culturas dos dois grupos. A direção ouviu, de forma direta ou indireta, os 31 mil empregados em todo o mundo sobre qual o modelo que queriam para o novo grupo. Contratou para isso uma empresa de consultoria europeia.
O novo modelo foi dividido em negócios e pessoas. O primeiro, organizacional, já foi definido e divulgado entre os funcionários. O de pessoas contém o que o grupo espera dos empregados e o que esses podem esperar da gerência.
O grupo espera que o funcionário assuma responsabilidade, tenha comportamento colaborativo, inclusive como cidadão, aja de maneira transparente dentro da empresa, compartilhando informações de forma correta e não tenha temor de falar sobre práticas e comportamentos inadequados. Já o funcionário pode esperar que os líderes da empresa sejam inspiradores e encorajem o trabalho em time, que respeitem as pessoas e contribuam para seu desenvolvimento. A Solvay também criou um canal para os funcionários encaminharem denúncias, o programa Speak Up, com uma lista de práticas reprováveis, como a falsificação de relatórios financeiros, auditorias irregulares ou ilegais, suborno, conflitos de interesse, oferta ou recebimento de presentes ou entretenimento, negociação de informações confidenciais da empresa, fraude, espionagem ou sabotagem empresarial, assédio e discriminação.
Na fusão entre os bancos Itaú e Unibanco, em novembro de 2008, princípios e políticas similares das duas instituições ajudaram na integração dos valores. Os dois bancos contavam com seus respectivos códigos de ética e o documento pós-fusão foi atualizado em junho deste ano e distribuído entre os cerca de 100 mil funcionários.
Dividido em quatro capítulos, correspondentes aos princípios de identidade, interdependência, boa fé e excelência, o código cita exemplos do que é aceitável e não aceitável para a organização. “É um documento de adesão obrigatória para todos”, diz Deives Rezende, superintendente de ética e ombudsman interno do Itaú Unibanco.
O código resultou de reuniões com grupos de 200 funcionários, durante seis meses, para discussão de situações e dilemas éticos. “Para nós, foi um processo muito fácil, pela reputação das duas instituições, cujo histórico quase centenário é de respeito a seus contratos e seus sócios. Os valores já eram compartilhados”, diz Claudio Arromatte, diretor de controles internos (compliance) do Itaú Unibanco. Para ele, o que está previsto na lei anticorrupção significa, para o banco, um complemento de uma série de políticas e iniciativas já praticadas, até porque o mercado financeiro é extremamente regulado. “A preocupação com a reputação é permanente na organização, para responder às necessidades dos stakeholders”, afirma.
O banco conta também com uma comissão superior de ética, formada pelo presidente e vice-presidentes, comitês de ética das áreas executivas, além da superintendência de ética e ombudsman – responsável por esses comitês e que funciona como consultoria de ética, com especialistas do banco – e ouvidoria interna para diálogo, manifestações de dúvida, denúncias e aconselhamentos, aberta a todos os funcionários.
Segundo Rezende, são comuns dúvidas sobre participação em ONGs, associações de classe, sociedade em empresas e convites para lecionar em universidades. “Dependendo da atividade externa, há aprovação. O que não pode é haver conflito de interesse”, diz.
Na Natura, o documento Princípios de Relacionamento, criado em 2006, transformou-se em código de conduta em 2013, que também relaciona, de forma clara, o que é ou não permitido. Os funcionários contam com uma ouvidoria para encaminhar dúvidas e denúncias. Denúncias graves, como fraude, são remetidas à área de auditoria para investigação e quem decide por alguma consequência é o comitê de ética, formado por executivos da alta liderança e ouvidoria. A educação sobre o tema é contínua. “É um processo de longo prazo, que começa com a chegada de um novo colaborador e se estende ao longo de sua carreira na empresa”, Leila Kido, gerente de qualidade das relações e ouvidoria da Natura e responsável pelo Comitê de Ética. Para Almir Xavier, gerente de riscos e compliance, a lei anticorrupção não deverá causar impacto na Natura. “Mas estamos fazendo um diagnóstico das ações da empresa para corrigir eventuais lacunas e estarmos preparados antes que a lei entre em vigor”, afirma.
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