Por Víctor Gabriel Rodríguez – 23/07/2013 às 00h00
Um dos grandes juristas brasileiros disse que só existe um método para se conceituar a Justiça, e ele começa pelo negativo. Ou seja, seu conceito é tão aberto, tão amplo, que fica muito mais simples reconhecer, até por um sentimento intuitivo, o que não seja justo. E talvez isso ocorra para além do puro método, porque na verdade o justo é a regra, portanto o injusto é exceção, e esta é sempre mais facilmente identificável. Ao menos, assim deveria ser.
Sei que a comparação não é exata, mas ao delito de lavagem de dinheiro se pode aplicar raciocínio muito semelhante. O conceito foi, pelo uso comum, tão ampliado, que hoje fica mais simples, a fim de explicá-lo, enunciar o que não é lavar ativos. Tentarei aqui construir algo dessa definição negativa, mas antes disso há que fixar uma premissa: a de que não foram as alterações recentes da lei de lavagem que deram causa a essa equivocada fermentação do conceito, mas apenas uma compreensão pouco técnica de o que seja realmente a conduta proibida. Porque a ampliação do tipo penal (pela Lei nº 12.683, de 2012, que modificou a norma original da lavagem de dinheiro, a Lei nº 9.613, de 1998) não tem relação com o que aqui cuidamos.
A lei nova, em resumo, fez apenas com que qualquer espécie de infração penal se possa considerar delito antecedente da lavagem, à diferença da regulação anterior, na qual apenas se criminalizava o branqueamento dos valores advindos de alguns delitos específicos, considerados mais graves. A errônea interpretação a que me refiro, porém, independe desse câmbio legislativo, o que implica reconhecer que se tem concedido ao tipo penal uma interpretação que a lei não deseja e, pior, não permite.
O conceito foi tão ampliado que hoje fica mais simples, a fim de explicá-lo, enunciar o que não é lavar ativos
A origem dessa interpretação equivocada é o esquecimento de que a essência da lavagem de dinheiro é a introdução, na economia regular, de dinheiro oriundo de crime. Mesmo quando se entende que essa introdução possa ser meramente tentada, ela tem de mostrar-se como finalidade, caso contrário estamos diante de algo que não traz em si o mal que a lei pretende constranger. Tanto assim é que muitos estudiosos consideram expressamente que o delito de branqueamento traz em sua raiz a ofensa ao equilíbrio concorrencial: o proprietário de um restaurante que paga seus impostos e faz cálculos apertados de investimento não pode concorrer livremente com o restaurante de seu vizinho, quem montou uma empresa para injetar valores provenientes, por exemplo, do narcotráfico. O narcotraficante está, em nossa hipótese, a introduzir na economia dinheiro corrosivo, porque destrói o concorrente honesto.
Ainda que soe estranho, então, aquele que utiliza seu lucro no delito para alimentar sua própria atividade criminosa pode ser um grande delinquente, mas não é um autor de lavagem. A retroalimentação da criminalidade é problema social diverso do branqueamento, e talvez muito mais usual que ele, porque – para nos mantermos na ilustração – o marginal que pretenda reinvestir seu lucro de narcotráfico em compra de novos entorpecentes não desejará jamais ver seu dinheiro inserto na economia regular; de modo análogo, o político corrupto financiará sua campanha eleitoral com os dólares de sua maleta, e estes sempre passarão longe dos olhos das autoridades fiscais. Sem ao menos a intenção do disfarce, para introdução do valor financeiro como lícito, o delito não se caracteriza.
E esse disfarce há que ser, ainda, independente. Apenas ocultar o produto de um delito anterior implica exaurimento desse tal crime, nada mais. Caso contrário, ao ladrão de banco seria imputada lavagem sempre que ele deixasse de apresentar em sua declaração de renda os lucros obtidos em seu último assalto. Soa sarcástico, mas não de todo. Tanto é assim que algumas respeitáveis legislações estrangeiras são expressas em descriminalizar a autolavagem, ou seja, a conduta do branqueamento quando executada pelo próprio autor do crime antecedente.
A interpretação alargada a que nos referimos não é uma mera questão pontual na aplicação da lei, porque importa em consequências de sistema, identificáveis por qualquer jurista. Ou seja, se de imediato surge a vantagem de agravar as reprimendas a delitos antecedentes repugnantes – por somar à pena a eles devida os anos de reclusão concernentes ao tal crime autônomo de branqueamento -, a longo prazo nota-se esterilidade de resultados, porque se sabe que a banalização do remédio reduz sua eficácia. Sem se nominar o mal reconhecível da condenação injusta, ou a perda de credibilidade das instituições, em virtude de processos-crime que ao fim serão mero arquivo, não é difícil concluir que a apontada incompreensão da essência desse tipo penal levará à futura impunidade dos verdadeiros atores dessa espiral tão nociva à economia, que a Lei nº 9.613, de 1998, intenta estancar.
Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo – FDRP e membro da União Brasileira de Escritores
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.
Sei que a comparação não é exata, mas ao delito de lavagem de dinheiro se pode aplicar raciocínio muito semelhante. O conceito foi, pelo uso comum, tão ampliado, que hoje fica mais simples, a fim de explicá-lo, enunciar o que não é lavar ativos. Tentarei aqui construir algo dessa definição negativa, mas antes disso há que fixar uma premissa: a de que não foram as alterações recentes da lei de lavagem que deram causa a essa equivocada fermentação do conceito, mas apenas uma compreensão pouco técnica de o que seja realmente a conduta proibida. Porque a ampliação do tipo penal (pela Lei nº 12.683, de 2012, que modificou a norma original da lavagem de dinheiro, a Lei nº 9.613, de 1998) não tem relação com o que aqui cuidamos.
A lei nova, em resumo, fez apenas com que qualquer espécie de infração penal se possa considerar delito antecedente da lavagem, à diferença da regulação anterior, na qual apenas se criminalizava o branqueamento dos valores advindos de alguns delitos específicos, considerados mais graves. A errônea interpretação a que me refiro, porém, independe desse câmbio legislativo, o que implica reconhecer que se tem concedido ao tipo penal uma interpretação que a lei não deseja e, pior, não permite.
O conceito foi tão ampliado que hoje fica mais simples, a fim de explicá-lo, enunciar o que não é lavar ativos
A origem dessa interpretação equivocada é o esquecimento de que a essência da lavagem de dinheiro é a introdução, na economia regular, de dinheiro oriundo de crime. Mesmo quando se entende que essa introdução possa ser meramente tentada, ela tem de mostrar-se como finalidade, caso contrário estamos diante de algo que não traz em si o mal que a lei pretende constranger. Tanto assim é que muitos estudiosos consideram expressamente que o delito de branqueamento traz em sua raiz a ofensa ao equilíbrio concorrencial: o proprietário de um restaurante que paga seus impostos e faz cálculos apertados de investimento não pode concorrer livremente com o restaurante de seu vizinho, quem montou uma empresa para injetar valores provenientes, por exemplo, do narcotráfico. O narcotraficante está, em nossa hipótese, a introduzir na economia dinheiro corrosivo, porque destrói o concorrente honesto.
Ainda que soe estranho, então, aquele que utiliza seu lucro no delito para alimentar sua própria atividade criminosa pode ser um grande delinquente, mas não é um autor de lavagem. A retroalimentação da criminalidade é problema social diverso do branqueamento, e talvez muito mais usual que ele, porque – para nos mantermos na ilustração – o marginal que pretenda reinvestir seu lucro de narcotráfico em compra de novos entorpecentes não desejará jamais ver seu dinheiro inserto na economia regular; de modo análogo, o político corrupto financiará sua campanha eleitoral com os dólares de sua maleta, e estes sempre passarão longe dos olhos das autoridades fiscais. Sem ao menos a intenção do disfarce, para introdução do valor financeiro como lícito, o delito não se caracteriza.
E esse disfarce há que ser, ainda, independente. Apenas ocultar o produto de um delito anterior implica exaurimento desse tal crime, nada mais. Caso contrário, ao ladrão de banco seria imputada lavagem sempre que ele deixasse de apresentar em sua declaração de renda os lucros obtidos em seu último assalto. Soa sarcástico, mas não de todo. Tanto é assim que algumas respeitáveis legislações estrangeiras são expressas em descriminalizar a autolavagem, ou seja, a conduta do branqueamento quando executada pelo próprio autor do crime antecedente.
A interpretação alargada a que nos referimos não é uma mera questão pontual na aplicação da lei, porque importa em consequências de sistema, identificáveis por qualquer jurista. Ou seja, se de imediato surge a vantagem de agravar as reprimendas a delitos antecedentes repugnantes – por somar à pena a eles devida os anos de reclusão concernentes ao tal crime autônomo de branqueamento -, a longo prazo nota-se esterilidade de resultados, porque se sabe que a banalização do remédio reduz sua eficácia. Sem se nominar o mal reconhecível da condenação injusta, ou a perda de credibilidade das instituições, em virtude de processos-crime que ao fim serão mero arquivo, não é difícil concluir que a apontada incompreensão da essência desse tipo penal levará à futura impunidade dos verdadeiros atores dessa espiral tão nociva à economia, que a Lei nº 9.613, de 1998, intenta estancar.
Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo – FDRP e membro da União Brasileira de Escritores
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.
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