É o item “mais bagunçado da história da contabilidade”, me disse uma vez, há alguns anos, o professor Eliseu Martins, da FEA-USP, que tratou do tema em sua famosa tese de doutorado, defendida em 1972. “Não há nenhum outro item com visões tão extremadas, que variam conforme o humor da época”, me relatou o professor.
Ele falava do ágio gerado em aquisições de empresas.
Quase dez anos após o Brasil seguir a prática global e adotar um modelo em que este ágio só é baixado do balanço quando as coisas vão mal, por perda no valor recuperável (na baixa por “impairment”), o modelo de amortização periódica, que vigorava no país até 2008, volta a ser discutido no mundo.
Em julho, o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (IASB, na sigla em inglês) decidiu que vai preparar um documento técnico sobre ágio, para ser colocado em discussão.
Ninguém precisa correr por enquanto – a lentidão dos processos do IASB é conhecida e já foi citada nesta coluna. Mas a notícia é relevante porque pode significar que, dentro de alguns anos, os países que usam o IFRS, incluindo o Brasil, terão que rever o tratamento contábil que dão atualmente ao ágio.
Nos Estados Unidos, desde 2014 o modelo de amortização do ágio em período fixo passou a ser opcional para as empresas de capital fechado, e uma mudança para as companhias abertas está em análise pela área técnica.
Antes, uma explicação breve sobre o “nascimento” do ágio.
Quando uma empresa compra outra, o preço da transação normalmente decorre de um processo duro de negociação entre as partes, que costuma passar longe dos valores históricos registrados nos livros contábeis. Ele reflete tanto aspectos ligados ao potencial de geração de caixa futuro do negócio, como também percepções pessoais dos envolvidos, especialmente em companhias familiares.
Fechado o negócio, contudo, cabe ao contador a ingrata tarefa de registrar a transação no balanço da adquirente. Tecnicamente, isso se chama “alocação do preço de compra”.
As normas contábeis exigem a mensuração do valor justo dos ativos e passivos adquiridos. Tanto aqueles que já estavam no balanço da empresa comprada, que podem ter alguma “mais valia” a ser contabilizada, como também o de intangíveis que não estavam computados na contabilidade da adquirida – como marcas dela – e passivos ligados a contingências.
A soma das partes, no entanto, não costuma bater com o valor cheio pago na transação. E como na contabilidade os débitos precisam igualar os créditos, o valor que sobra tem que aparecer em algum lugar.
Essa diferença recebe o nome de ágio por expectativa de rentabilidade futura (“goodwill”, em inglês) quando o preço pago na aquisição supera a soma do valor justo dos ativos líquidos identificáveis, ou de deságio, no caso contrário, que é mais raro.
Para fins fiscais, no Brasil, a Receita Federal permite (ou diz que permite, para depois poder autuar com multa) que ele seja amortizado num prazo de cinco anos a dez anos, após a incorporação da empresa adquirida. Ou seja, o ágio vira uma despesa dedutível para fins de cálculo do Imposto de Renda e CSLL a pagar. E depois some do “balanço fiscal” (que só existe em controles paralelos).
No balanço societário, até 2008, o goodwill também era amortizado periodicamente, aparecendo como uma despesa de valor conhecido no balanço das companhias brasileiras.
A partir de 2009, em meio ao processo de adoção do IFRS, mudou-se a prática contábil e o ágio registrado passou a ficar “congelado” como um ativo intangível especial no balanço.
Desde então, o ágio por expectativa de rentabilidade futura só diminui de tamanho se, em um teste que a empresa deve fazer no mínimo anualmente para checar seu valor recuperável (teste de impairment), for verificado que o fluxo de caixa futuro a ser obtido com aquele ativo, a valor presente, é inferior ao número registrado na contabilidade.
Esse modelo previsto hoje no padrão internacional IFRS evita reconhecimentos periódicos de despesas, em troca de eventuais “pancadas” no resultado quando as coisas vão mal.
O que traz o ágio de volta ao debate hoje é uma combinação de fatores técnicos e políticos – como quase sempre ocorre nos processos de mudanças de normas contábeis.
De um lado, a pressão já antiga de países como Japão e Itália, além do órgão normatizador europeu, que defendem a retomada da amortização. De outro, a percepção de técnicos do IASB de que o modelo atual pode estar caro demais para as empresas e sendo pouco informativo para os investidores.
Já faz tempo que as empresas se queixam do custo para a realização periódica de testes de impairment. Se soma a isso, agora, o argumento de que as baixas têm vindo tarde demais, quando os investidores já colocaram, por conta própria, as perdas nos preços das ações.
Segundo o IASB, haveria dois motivos para o atraso na baixa contábil. O primeiro é que as empresas usam premissas muito otimistas para projetar resultados futuros ao fazer os testes de impairment. O segundo é o fato de o goodwill muitas vezes se misturar com ativos preexistentes da compradora, que estariam subavaliados no balanço – seja pela depreciação registrada em anos anteriores ou por haver intangíveis gerados internamente que nunca foram reconhecidos como ativo.
Como as projeções de geração de caixa nos testes são feitas a partir de unidades geradoras de caixa (UGCs), os ativos subavaliados dão uma “folga” que pode prolongar a sobrevivência de um goodwill sobrevalorizado dentro de uma mesma UGC no balanço (há um paralelo matemático aqui com as refinarias antigas e novas da Petrobras, embora aquele não fosse um caso de ágio, mas de ativo imobilizado).
Alguns analistas vão dizer que tanto a amortização como o impairment são excluídos de seus modelos, por não representarem saída de caixa no período em que são registrados. Mas essa visão não parece muito acurada, já que gastar caixa da empresa em aquisições que geram valor (acima do pago) não pode ser igual a gastar caixa com aquisições que não geram.
Além disso, o IASB costuma citar trabalhos acadêmicos que apontam que o mercado reage quando ágios são baixados do balanço por perda de valor, o que seria um indicativo de relevância da informação.
Entre as vantagens de não haver amortização está a de se manter no balanço um intangível que é capaz de gerar caixa para a empresa. Reduzir o ágio com data marcada pode deixar o ativo com valor zero quando ele ainda estiver gerando benefícios para a companhia.
Por outro lado, a não amortização gera uma falta de confrontação temporal entre receitas (geradas pelo negócio adquirido) e as “despesas” realizadas para obtê-las.
Fato é que, embora o modelo de impairment tenha seus problemas, os defensores da amortização enfrentam um desafio conceitual complicado para apontar um prazo ideal para que todos os ágios de aquisições de empresas do mundo sejam baixados. Cinco anos? Sete anos? Dez anos?
Isso envolve uma dose de arbitrariedade que não combina com o IFRS, que prega que os princípios devem prevalecer sobre regras.
Segundo a Dealogic, 22.714 fusões ou aquisições foram anunciadas em 2018 até segunda-feira. Para cada negócio, um ágio. São 22.714 problemas para os contadores.
Fernando Torres é repórter de S.A.
E-mail: fernando.torres@valor.com.br
Excelente matéria, versando sobre um tema atual e de muito interesse!
Obrigado por compartilhar!
E ainda tem quem acredite que a profissão vai acabar sendo substituída por uma inteligência artificial. Muito boa esta matéria publicada no VALOR ECONÔMICO mostrando apenas uma das complexidades do dia a dia contábil onde se exige de seus profissionais, cada vez mais, poder de analise e julgamento.