Por Marcelo Godke Veiga e Erik Frederico Oioli – Valor – 27/08/2014 às 05h00.
Desde a edição da Lei nº 9.307 (Lei de Arbitragem), de 26 de setembro de 1996, a utilização da arbitragem como mecanismo de resolução de controvérsias é cada vez mais aceita e respeitada. Disputas de alta complexidade e valor, que necessitam de decisões sigilosas e menos demoradas são submetidas à decisão de árbitros privados especializados e de boa reputação, em câmaras com excelente estrutura. A necessidade de se socorrer de tal mecanismo torna-se cada vez maior em decorrência do atual abarrotamento do Poder Judiciário.
Tal necessidade se percebe facilmente pelo aparecimento de vários tribunais arbitrais nos últimos anos. Câmaras de comércio e associações de classe, dentre outros, criaram tribunais privados de alta qualidade, assim como as listas de árbitros com conhecimento notório e especializado também vêm crescendo.
Com base no êxito aparentemente observado, o Projeto de Lei nº 406, de 2013, que tramita no Congresso Nacional, visa a ampliar a utilização da arbitragem. Uma vez sancionado, deverá generalizar e tornar obrigatória a arbitragem prevista em contratos de adesão mesmo sem a anuência expressa dos aderentes. Podem-se incluir, entre eles, portanto, adquirentes de valores mobiliários em bolsa ou mercado de balcão, sejam estes de renda fixa ou variável.
A arbitragem no mercado de valores mobiliários deve interessar a alguns, mas certamente não ao pequeno investidor
Tal proposta de alteração legislativa, no entanto, soa irrefletida. A tendência de ampliação da utilização da arbitragem deve ser vista com critério. Primeiramente, mesmo que seja (relativamente) rápida e eficiente, pode ser bastante cara, já que os honorários cobrados por árbitros, advogados e peritos são, via de regra, elevados. A remuneração cobrada pelas câmaras também não pode ser considerada desprezível. Mesmo que, em média, seja menos demorada que um processo judicial e conduzida por experts, ela só compensará às partes envolvidas se o caso em disputa for de valor elevado. Trocando em miúdos, a arbitragem não é para todo tipo de caso.
Se o referido projeto de lei for sancionado, será criado evidente impedimento para que os pequenos investidores demandem seus direitos, uma vez que o processo em si poderá ser muito mais caro que o valor que eventualmente se tenha direito a receber. O impedimento é indireto, de caráter econômico, mas certamente servirá como barreira para o exercício de direitos. Até mesmo por tal motivo, sua constitucionalidade pode ser questionada.
É bastante curioso o fato de que, embora os processualistas brasileiros comumente inspirem-se no direito italiano, neste ponto específico, os autores do referido projeto de lei seguem o caminho oposto, já que na Itália é proibida a imposição de cláusula de arbitragem por adesão em estatutos de companhias abertas. O mesmo se observa, salvo raríssimas exceções, no direito societário estadunidense – inclusive na New York Stock Exchange – e em vários outros países.
O motivo é muito simples: no caso de direitos difusos e coletivos, a imposição da arbitragem serve como maneira de se impedir a busca de direitos. Nos Estados Unidos, onde o instrumento processual mais comumente utilizado é o da class action, que congrega centenas ou milhares de autores em um só processo, o custo pode ser astronômico. No Brasil, além de não haver igual instrumento processual, no caso de acionistas que visem a reparar danos causados à companhia, os custos processuais são, via de regra, suportados pelo próprio acionista, a menos que obtenha êxito em seu pedido. Neste caso, os benefícios revertem-se a todos os acionistas, cabendo ao autor da ação apenas uma fração indireta do ganho obtido. Isto, por si só, já é forte desestímulo ao ativismo societário, que prejudica o aprimoramento do mercado de valores mobiliários brasileiro.
É importante ressaltar que o paradigma criado pelo Nível 2 e pelo Novo Mercado da BM&FBovespa, cujos regulamentos exigem que as companhias neles listadas, seus administradores e acionistas controladores submetam-se à arbitragem não representa restrição de acesso ao Judiciário, até mesmo porque a anuência expressa deles será necessariamente obtida. Já no que diz respeito aos pequenos investidores, no entanto, nos estatutos sociais com cláusula que pretendam vinculá-los à arbitragem, o que existe é verdadeiro contrato de adesão que, pelo que determina o parágrafo 2º do artigo 4º da Lei de Arbitragem em sua atual redação, não os obriga por não terem anuído expressamente. Mas, uma vez em vigor as alterações legislativas propostas, eles também deverão necessariamente lançar mão de procedimento arbitral.
Assim, a arbitragem no mercado de valores mobiliários deve interessar a alguns, mas certamente não ao pequeno investidor. Se o que se busca é protegê-los como maneira de fomentar o crescimento do mercado de capitais, o caminho da proposta legislativa em trâmite certamente não é o melhor.
Marcelo Godke Veiga e Erik Frederico Oioli são, respectivamente, sócio de Godke Silva & Rocha Advogados (São Paulo) e de Godke Marathas Silva & Williams, PLLC (Miami) e sócio de Vaz, Barreto, Shingaki & Oioli Advogados (São Paulo)
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