VALOR -16/02/2022.
Por José P. Marzagão, Celso Grisi e Giampaolo Marzulli.
O recente precedente da CVM pode ter acertado na forma de impacto do saldo de prejuízos acumulados, mas não foi tecnicamente perfeito.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por meio da Superintendência de Supervisão de Securitização (SSE), proferiu uma decisão administrativa envolvendo o Maxi Renda Fundo de Investimento Imobiliário (MRFI), que pode vir a impactar o mercado de Fundos de Investimentos Imobiliários (FIIs) brasileiros de forma significativa, notadamente no que se refere ao cálculo dos rendimentos semestrais devidos aos cotistas dos fundos. Tamanho é esse impacto que, dias após sua publicação, o colegiado da CVM suspendeu seus efeitos até ulterior análise de pedido de reconsideração apresentado pelo FII.
O cerne da questão é o seguinte: o artigo 10, parágrafo único, da Lei n° 8.668/93 dispõe que o FII deverá, obrigatoriamente, distribuir aos seus cotistas ao menos 95% do lucro semestral apurado com base no regime de caixa. Tal normativo possui duas intenções principais: garantir aos cotistas seus rendimentos semestralmente; e garantir ao Fisco federal que o FII não será usado como veículo de postergação infinita de pagamento de tributos.
Mas não há na lei citada acima qualquer parâmetro para nortear a apuração de resultados do FII com base no regime de caixa, sendo que, no mundo corporativo, como regra geral, essa ocorre com base no regime de competência. Como um FII não é, e não pretende ser, uma pessoa jurídica, a CVM emitiu no passado dois normativos (Ofício Circular nº 1/2014 e Memo nº 1/2015) para tratar do dito “regime misto” de apuração de resultados do FII. Nesse regime é necessário partir do resultado contábil apurado com base no regime de competência e ajustá-lo para que receitas/despesas contabilizadas e ainda não recebidas/pagas sejam excluídas; e receitas/despesas contabilizadas em períodos anteriores recebidas/pagas sejam incluídas.
Recentemente, a CVM impôs, quando da análise do caso MRFI, um novo critério a ser observado pelos FIIs: na hipótese em que o FII não possua lucros correntes ou acumulados, e possua saldos de prejuízos acumulados, esse não poderá distribuir o resultado apurado no período como rendimento aos cotistas, e caso o faça, deverá atribuir esse pagamento à modalidade de amortização de cotas ou devolução de capital.
Enquanto uma pessoa jurídica, de fato, busca a continuidade de suas atividades empresariais e a lucratividade em suas operações detendo direitos e obrigações com sócios, credores, sendo natural que essa, em uma posição com prejuízos acumulados, não possa distribuir dividendos aos seus sócios, um fundo tem um viés totalmente diverso: tem como pressuposto o investimento em um ramo específico (i.e., imobiliário, equity, créditos, entre outros) com inúmeras restrições operacionais de tomada de dívida/alavancagem, constituição e administração, ditados pela própria CVM.
A sua essência é, de acordo com o artigo 10, parágrafo único, da Lei n° 8.668/93, que o caixa auferido semestralmente seja distribuído aos seus cotistas como forma de remunerar o investimento realizado pelo investidor. Diga-se de passagem, ainda, que a imposição da obrigatoriedade de distribuição semestral foi no sentido de evitar a procrastinação e não pagamento de imposto. Contudo, o que se verifica, de fato, no mercado de fundos pulverizados é que a distribuição mensal (com tributação sobre essa distribuição) do investidor que adquire quotas de FII cumpre com a real intenção do investidor de ter um rendimento mensal – se não o tiver ou ainda existir o risco de esse rendimento mensal inexistir por fatores contábeis, mas que não passam na cabeça do investidor, dificilmente esse investidor optará por investir em um FII.
Essa pretensão de impedir o pagamento de rendimentos contra saldos de prejuízo acumulado nada mais é do que uma equiparação indevida dos FIIs às pessoas jurídicas empresárias visando à imposição de restrições desnecessárias a esses veículos de investimentos. E mais: sabe-se que muitos FIIs, entre 2020 e 2022, têm registrado prejuízos contábeis, apurados com base no regime de competência, em razão dos impactos da covid-19 no valor a mercado de seus ativos, bem como no fluxo e valor de recebimento de aluguéis. Logo, essa restrição da CVM penaliza duplamente o cotista, vez que impede o recebimento de um rendimento que já foi afetado negativamente pela pandemia.
A despeito do conteúdo acima, é importante deixar claro que esse impacto adverso deveria ocorrer, como bem disse a CVM, na operação de amortização de cotas ou devolução de capital, mas no momento de liquidação do FII, pois é nessa oportunidade que se deve verificar os haveres de cada investidor do fundo.
Nesse contexto, o precedente recente da CVM pode ter acertado na forma de impacto do saldo de prejuízos acumulados no âmbito do FIIs, que seria nas transações de amortização de cotas ou devolução de capital, mas não foi tecnicamente perfeito no momento da verificação desse efeito adverso que, com base no regime de competência, deveria ser a data de liquidação do FII. Mais e mais, entendemos como razoável a nova decisão da CVM de suspender a decisão anterior vis-à-vis o impacto dessa ao mercado, e aguardamos que uma nova decisão seja tomada, entendendo a distinção entre um fundo de investimento e uma sociedade empresária.
José Paulo Marzagão, Celso Grisi e Giampaolo Marzulli são, respectivamente, sócios e associado sênior do Tauil & Chequer
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.