valorinveste.globo.com – 01/07/2020 – Valor Investe – Rio.
Por André Rocha – – Analista de ações certificado pela Apimec.
Investidor deve acompanhar o resultado das cias, atentando para alguns pontos para não ser surpreendido.
Uma leitora me enviou essa mensagem na última semana: “Li um artigo seu sobre giro de caixa. Muito útil. Tem algum material para me indicar acerca de análise da saúde financeira das empresas, para não se deixar enganar pela maquiagem dos relatórios?”
A contabilidade tem sido relegada a um segundo plano pelo mercado financeiro. Como analistas e gestores vêm, na sua maioria, da Engenharia, Economia e Administração, é natural que deem menor importância à contabilidade. Isso também tem ocorrido com o Direito Societário. Mas essas duas disciplinas são fundamentais para a avaliação de empresas.
Quando a administração de uma companhia resolve fraudar suas demonstrações, descobrir o cambalacho não é fácil. O mercado pode ser enganado por anos. Banco Nacional e Enron estão aí como prova. Mas mesmo que a companhia aja de forma correta, o analista pode descobrir inconsistências, permitindo que se afaste de companhias problemáticas.
Abaixo algumas dicas que ajudam para uma análise mais apurada das demonstrações contábeis:
1) A DESPESA MERAMENTE CONTÁBIL
O leitor já sabe que, na contabilidade, um débito sempre tem como contrapartida um crédito. O saldo das contas de ativo aumenta com débitos e o das de passivo com créditos. Na demonstração de resultados, onde se apurará o lucro ou prejuízo do ano, as receitas e as despesas crescem com créditos e débitos, respectivamente.
Em épocas de forte desvalorização cambial, companhias com elevada dívida em dólar precisam atualizar o saldo de seus empréstimos (passivo) com o lançamento de um crédito. A contrapartida é uma despesa financeira no resultado (débito), reduzindo o lucro ou até mesmo levando-o a prejuízo.
O primeiro trimestre foi pródigo em companhias que passaram por essa situação: BRF (BRFS3), Suzano (SUZB3), etc.
Não necessariamente houve desembolso financeiro. Como a contabilidade trabalha com o regime de competência, as demonstrações devem ser atualizadas conforme os eventos ocorram, independentemente se houve entrada ou saída de caixa.
Se a dívida for de longo prazo, o lançamento contábil impactou apenas o resultado, sem qualquer reflexo sobre o caixa. O câmbio pode ceder nos exercícios seguintes e o saldo dos empréstimos será ajustado para baixo (débito), gerando, dessa vez, uma receita financeira (crédito).
Contudo, o risco de que ocorra um impacto no caixa em algum momento é real. Quais cuidados o analista deve tomar?
a)Ver a proporção das receitas referenciadas em dólar em relação ao total. Esse tipo de receita compensa as despesas em dólar;
b)Observar se a companhia possui política de hedge como uma opção de compra (call) de dólar, por exemplo. Dessa forma, parte do pagamento do empréstimo será compensado pelo ganho do derivativo;
c)Olhar o montante dos empréstimos que estão contabilizados no passivo circulante. Essa parcela terá vencimento em 12 meses e tem maior probabilidade de ter impacto no caixa derivado de desvalorizações cambiais intensas como ocorreu no primeiro trimestre de 2020.
No momento que ocorre o pagamento, o empréstimo é baixado do balanço com um débito no passivo e um crédito no caixa, indicando o desembolso financeiro com a redução do saldo de caixa.
2) PESQUISA E DESENVOLVIMENTO
Algumas indústrias, como a farmacêutica e a de tecnologia, precisam gastar com pesquisas para desenvolver seus produtos e serviços. Esses dispêndios são lançados na demonstração de resultados como despesa (débito), diminuindo o lucro. Apesar de, em um primeiro momento, diminuírem o resultado da empresa., eles são fundamentais para a sustentabilidade da companhia.
Mas veja que curioso. Uma empresa que gaste menos em pesquisa e desenvolvimento tende a possuir um lucro maior. Portanto, terá um múltiplo P/L (cotação dividido pelo lucro por ação) menor. Isso torna seu indicador mais atraente do que o da companhia que gasta mais com pesquisa e desenvolvimento.
Contudo, essa análise é errada, pois se concentra no curto prazo. Provavelmente, a companhia que poupou perderá competitividade no médio prazo. Foi o caso da farmacêutica americana Valiant. O múltiplo “barato” pode sair caro.
3) RELACIONAMENTO COM O CONTROLADOR
Analisar o comportamento do controlador é fundamental antes de investir em uma empresa. Você não faria o mesmo caso lhe chamassem para ser sócio de um pequeno empreendimento?
É importante observar como o controlador trata o minoritário. Essa análise compreende aspectos subjetivos e objetivos.
Além disso, é necessário ver como o controlador administra a controlada. Ele pode, muitas vezes, querer acessar o caixa da subsidiária para benefício próprio:
a)Dividendos generosos: o controlador pode decidir distribuir dividendos além da capacidade financeira da controlada para aumentar sua própria geração de caixa, permitindo que honre suas obrigações;
b)Contratos de mútuo: o controlador pode fazer empréstimos com sua controlada;
c)Pagamento de royalties: o controlador pode cobrar pelo direito do uso do sobrenome da família (Klabin, Gerdau);
d)Assentos no Conselho de Administração: o controlador pode utilizar sua controlada para dar emprego aos membros da família;
e)Pagamento de serviços: o controlador pode empurrar despesas suas para a controlada como pagamento de aluguéis, viagens etc.
Investidores podem pesquisar estes dados no Formulário de Referência, publicados no site da CVM.