https://valor.globo.com/financas – 13/01/2022.
Por Fernando Torres – jornalista, mestre em contabilidade e editor do Valor Investe.
Com a inflação em 10%, autores usam a palavra “desastre” para descrever o que esperam da qualidade dos números referentes ao ano passado.
Na minha última coluna contei qual era o meu título preferido do Tesouro Direto e expliquei que o motivo era o medo da inflação, ainda persistente no Brasil.
Por coincidência (ou não), recebi neste início de 2022 um belíssimo texto do professor Ariovaldo dos Santos, da FEA-USP, revisado pelo seu colega Eliseu Martins, com uma provocação sobre as distorções que a inflação está causando nos balanços das empresas brasileiras (mas não só). E com o alerta de que o estrago será ainda maior na safra de 2021, tendo em vista que o IPCA superou a casa dos 10% no ano passado.
E a reflexão que os dois propõem, especialmente aos contadores, mas também a reguladores, formuladores de padrões contábeis, investidores e demais envolvidos, é se a contabilidade está cumprindo seu objetivo com o tipo de dado que está sendo divulgado. “O que o usuário busca nas demonstrações contábeis é ‘informação’, e nos parece óbvio que ele deseja e vai em busca da melhor informação. A responsabilidade de não só informar, mas oferecer a melhor informação possível, mesmo reconhecendo nossas limitações, foi, é e deveria ser sempre o objetivo maior dos profissionais da contabilidade, principalmente quando da elaboração de seu principal instrumento de comunicação com os usuários: as demonstrações contábeis”, escrevem no texto.
Com a ressalva de que este não é o único problema, autor e revisor se concentram em um tema que é caro aos dois, e que ressaltam que parece esquecido pela maioria dos profissionais: o efeito da inflação nos balanços. “É um absurdo se imaginar que a inflação só comece a provocar distorções nas demonstrações contábeis quando acumula 100% em três anos”, diz o texto, fazendo referência à norma do Iasb/IFRS sobre o assunto.
Para dar ideia do tamanho do problema que está por vir, os professores apresentam alguns exemplos do efeito da inflação em demonstrações contábeis de 2020, quando a variação do IPCA que foi de “apenas” 4,5%.
Quem é leigo pode achar que basta se descontar o valor da inflação diretamente no resultado. Então se a empresa lucrou R$ 100, e a inflação foi de 10%, o lucro “real” teria sido próximo de R$ 90. Mas não é assim que as coisas funcionam. O impacto pode ser muito maior, e tanto para baixo como para cima, a depender da estrutura de ativos e passivos da companhia.
Vamos aos exemplos trazidos pelos professores. O Itaú divulgou como lucro líquido de 2020 a expressiva quantia de R$ 18,91 bilhões. “Óbvio que tudo o que é e foi calculado a partir do lucro líquido, com os respectivos ajustes, será feito a partir desse valor. Assim, impostos sobre o lucro, dividendos, remuneração da administração, participação dos funcionários nos resultados etc. partirão desse valor ou a ele referente”, diz o texto. Refazendo-se os cálculos incluindo o efeito do IPCA de 4,5% naquele ano, “da forma simples e eficiente criada pela Lei das Sociedades por Ações”, os autores chegam a um lucro corrigido de R$ 14,11 bilhões. “A diferença é de ‘somente’ 25,4% ou R$ 4,8 bilhões!!! É de se afirmar que algo que começa errado dificilmente se conserta no caminho, não?”
E continuam: “Que fique claro, não estamos aqui recomendando que os impostos sobre o lucro ou os dividendos passem a ser calculados sobre esse novo valor, afinal isso está proibido por lei, estamos apenas alertando que o resultado de R$ 18,9 bilhões apresentado por esse banco não está correto se consideramos que há alguma inflação no Brasil.”
Mas há que se ressaltar que o caso do Itaú não é isolado. “(Ele) está em companhia de todos os demais bancos que olimpicamente ignoram os efeitos da inflação em suas demonstrações contábeis. Por exemplo, o Banco do Brasil apresentou como lucro em 2020 o valor de R$ 12,51 bilhões, quando, após os efeitos inflacionários, esse resultado cai para R$ 9,93 bilhões, ou seja, 20,6%; isso equivale a R$ 2,58 bilhões a menos do que o valor que foi apresentado”.
É bom que se diga, porém, que nem todos os resultados pioram quando se computa os efeitos inflacionários, como no caso dos dois bancos citados.
Ariovaldo e Eliseu explicam que esses efeitos também podem ocorrer no sentido inverso. E mesmo dentro do mesmo setor. Apenas como exemplo, o resultado divulgado pelo Bradesco em 2020, de R$ 16,547 bilhões, subiria para R$ 16,896 bilhões com o ajuste da inflação, com acréscimo relativo de 2,1%, equivalente a R$ 349 milhões.
Mas será que a inflação afeta a qualidade das demonstrações contábeis apenas dos bancos? “A resposta para essa pergunta é um sonoro NÃO. As empresas não financeiras também têm seus resultados afetados pelos efeitos inflacionários, a depender de sua estrutura patrimonial”, dizem.
Conforme o exercício dos professores, o caso da Petrobras é o que apresenta a maior diferença absoluta em seus resultados. A estatal de petróleo divulgou lucro de R$ 7,11 bilhões em 2020. “Ao se considerar os efeitos da inflação de 4,5%, esse lucro passa a ser de R$ 23,75 bilhões. De novo, a diferença é de ‘somente’ 234% ou R$ 16,64 bilhões!!!”
Para citar outro exemplo da indústria (entre tantos apresentados no trabalho original), mas com efeito contrário, a Marcopolo apresentou lucro de R$ 103,9 milhões em 2020. Mas, ao se levar em conta os efeitos do IPCA de 4,5%, esse lucro cai para R$ 46,8 milhões, com significativa redução de 55%.
Os autores fazem a ressalva de que fizeram os cálculos sem a precisão que teriam caso tivessem acesso a detalhes da contabilidade de cada empresa. Mas ressaltam que isso não é motivo de alívio, dado que a execução dos cálculos detalhados talvez pudesse levar a ajustes maiores.
“Aos profissionais de contabilidade que atuam há mais tempo, óbvio, não estamos apresentando qualquer novidade, mas apenas um lembrete, afinal muitos deles podem ter se esquecido, pois passaram a raciocinar como os americanos, europeus, asiáticos e outros que ‘pensam’ que em seus respectivos países também não há inflação, ou que ela seja desprezível”, diz o texto.
“Que explicações poderemos dar aos jovens que estão chegando ao nosso mercado profissional quando eles descobrirem que nossas demonstrações de resultados apresentam receitas e despesas financeiras que podem não ser exatamente receitas ou despesas? Como explicar que os custos e despesas de depreciação podem e devem estar subavaliados? Como explicar, por exemplo, que a conta de terrenos que totaliza R$ 200.000 representa a aquisição de um terreno em 1997 e outro em 2018, ambos por R$ 100.000 cada? Para essa simples resposta não se pode esquecer que a esses mesmos jovens ensinamos que não se deve somar reais com dólares, euros com libras, pesos com ienes etc.”, afirmam.
Usando a palavra “desastre” para descrever o que esperam da qualidade dos números referentes a 2021, diante da inflação de dois dígitos, os professores finalizam com uma sugestão. “Queremos destacar que a CVM, após quase três décadas de sua emissão, ainda não revogou a Instrução nº 191 (que regulamenta a divulgação dos balanços em moeda constante para quem deseja). Óbvio que isso significa que ainda está vigente para quem quiser fazer uso dela.”