valor.globo.com – 04/10/2019.
Por Bruno Funchal e Aloisio Araújo.
A jurisprudência, ao reverter escolhas feitas pelo legislador, desequilibrou o sistema, gerou litigiosidade.
Os impactos positivos trazidos pela Lei 11.101/05 – que modernizou o sistema de recuperação judicial, extrajudicial e falência de empresas no Brasil, substituindo um decreto que vigorava desde 1945 – começaram a perder tração nos últimos anos, indicando a necessidade de o país realizar uma revisão desta lei.
A recuperação do crédito pelos credores, por exemplo, saiu de 0,2 centavos por real emprestado e chegou a 25,8 centavos após a aprovação da lei, alcançando níveis mais próximos dos padrões internacionais, porém, hoje, caiu para 14 centavos. Em 2018, a taxa média de recuperação dos credores na América Latina foi de 30,9 centavos, ou seja, mais de duas vezes a do Brasil, segundo dados do Doing Business – relatório que analisa e compara as regulamentações das empresas e o seu cumprimento.
Tornou-se necessária a revisão da lei 11.101 para manter o equilíbrio das partes interessadas no processo.
Ainda na comparação com outros países, a duração do processo judicial em casos de falência ou de recuperação na América Latina é de 2,9 anos, enquanto no Brasil o tempo é de quatro anos. Vale destacar que, antes da reforma proporcionada pela Lei 11.101, esse prazo durava, em média, 10 anos no Brasil.
O estudo acadêmico “The Brazilian Bankruptcy Law Experience”, de Araújo, Ferreira e Funchal, publicado em 2012 pelo Journal of Corporate Finance, evidenciou a importância que a melhoria do sistema de recuperação proporciona à economia. Os dados mostraram que a lei 11.101 impactou positivamente o mercado de crédito, com redução das taxas de juros e aumento do volume de empréstimos às empresas brasileiras. Quanto maior o valor recuperado pelos credores em casos de insolvência (e menor o tempo para que isso ocorra) menor é o prêmio de risco cobrado nas taxas de juros, reduzindo o custo do crédito e ampliando o volume ofertado.
A deterioração dos dados observada nos últimos anos é justificada, em parte, pela crise econômica no Brasil. Entretanto, é preciso reconhecer que alguns fundamentos importantes da lei foram sendo afastados ou relativizados por decisões judiciais bastante heterogêneas.
Diversas decisões judiciais divergem muito do que foi definido pela nova lei. Alguns exemplos mais recorrentes são as inúmeras prorrogações de prazo para o “stay period” definido em 180 dias pela lei, sendo esse prazo improrrogável (art. 6). Outras decisões judiciais acabaram por desvirtuar conceitos econômicos, criando um excesso de deferimentos no processo e concessão de recuperações judiciais a devedores inviáveis, cujas falências deveriam ter sido imediatamente decretadas para evitar fraudes e custos, além de melhor preservar o valor dos ativos.
Em outros casos, as decisões judiciais valeram-se, com muita frequência, de instrumentos que deveriam ser excepcionais, tais como a nulidade do voto do credor por abusividade e consolidação substancial de grupos econômicos, que acabam por trazer muita insegurança jurídica para o processo.
Esses são apenas alguns elementos que vêm onerando o sistema falimentar brasileiro, promovendo insegurança jurídica e piorando os indicadores econômicos. Fica claro que a Lei 11.101/05 buscou o equilíbrio na relação entre devedor e credores, inclusive aqueles não sujeitos à recuperação judicial. No entanto, a jurisprudência, ao reverter escolhas feitas pelo legislador, desequilibrou o sistema, gerou litigiosidade e inviabilizou que se possa, no Brasil, saber qual é, afinal, a regra do jogo.
Diante desse cenário, faz-se necessária uma revisão da lei para manter o equilíbrio entre as partes interessadas no processo, com potenciais efeitos positivos sobre o crescimento econômico, conforme evidenciado por Leveni, Loayza e Beck em seu artigo “Financial Intermediation and Growth: causality and causes”, publicado em 2000 no Journal of Monetary Economics. Neste sentido, a equipe econômica do governo juntamente com o relator do Projeto de Lei nº 10.220/2018, deputado Hugo Leal, acadêmicos, advogados públicos e privados, magistrados e membros do Ministério Público, vêm, ao longo dos últimos quatro meses, trabalhando em um projeto que assegure a modernização da lei 11.101/05.
Dentre os principais elementos do projeto, destacam-se:
- O reequilíbrio de forças entre devedores e credores, com a possibilidade do plano de recuperação judicial também ser proposto pelos credores, se atendido alguns requisitos;
- A segurança jurídica em relação a temas como voto abusivo, definindo estritamente em que situações poderá ser utilizado;
- A não sucessão de passivos que trazia incertezas em relação à venda de ativos;
- A redução de custos e aumento de eficiência dos processos, com maior celeridade e desburocratização;
- A solução para polêmicas como a tributação sobre “hair-cut” e do ganho de capital na falência;
- Mais possibilidades de solução do passivo fiscal na recuperação judicial;
- Prioridade para os novos financiamentos concedidos durante a recuperação judicial (DIP-Financing);
- Estímulo ao rápido recomeço (fresh start), com a redução do prazo para extinção das obrigações do falido e
- A disciplina da insolvência transnacional, observando os padrões internacionais.
O objetivo de um bom sistema de recuperação judicial, extrajudicial e falência de empresas é potencializar o valor e o uso dos ativos. Para isso, empresas economicamente inviáveis precisam ser rapidamente identificadas e liquidadas, assim como empresas economicamente viáveis precisam de solução rápida e justa. As mudanças em discussão visam a endereçar esses pontos e têm grande potencial de impacto no mercado de crédito e crescimento econômico.
Bruno Funchal é diretor da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia.
Aloisio Araújo é professor da Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro.