https://valor.globo.com/empresas – 30/09/2021.
Por Roseli Loturco, Para o Valor.
A rentabilidade voltou neste ano, mas o maior desafio para as grandes instituições é enfrentar a força dos novos competidores.
A pandemia da covid-19 não foi o único desafio enfrentado pelos bancos em 2020. O sistema financeiro passou por uma ruptura de modelo e gestão. O isolamento social acelerou a transição digital e o Banco Central (BC) fez valer regras que abrem o sistema para novos competidores como nunca antes o país havia experimentado. Isso tudo em meio a um ambiente em que a economia parou por alguns meses para saber como lidar com um cenário que não está claro até hoje.
Um dos efeitos desse novo desafio para os bancos foi a redução no lucro líquido em 24%, para R$ 101 bilhões, na comparação consolidada do ranking de Valor 1000 ante 2019. A queda ocorre depois de ter avançado 30,1% na variação entre 2019/2018. O recuo revelou, de outro lado, um sistema capaz de uma reviravolta sólida já na primeira metade deste ano. O crescimento da carteira de crédito de 51 bancos no primeiro semestre de 2021 foi de 15%, para R$ 3,89 trilhões, e o avanço médio do lucro saltou 65%, para R$ 63,86 bilhões, ante o mesmo período de 2020, segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating para o Valor.
De fato, a base de comparação é fraca, mas o nível de atividade operacional já lembra o de 2019. “Os sinais de 2021 mostram que os bancos voltaram a crescer e recuperaram parte da rentabilidade em níveis anteriores à pandemia. A qualidade da carteira também se restabeleceu. Porém os bancos tradicionais terão que enfrentar maior competição daqui para frente”, observa Erivelto Rodrigues, presidente da Austin.
Ele se refere não só à proliferação de fintechs que inundam o sistema financeiro nacional, mas também à entrada em operação do open banking (rebatizado de open finance) e do PIX, meio de pagamento instantâneo. Esses novos sistemas, já adotados em outros países, coloca no centro do tabuleiro jogadores que antes não existiam, como bigtechs, redes de varejo e empresas de telecomunicações, além dos bancos e plataformas que nunca haviam pensado em atuar amplamente no varejo financeiro.
Competidores declarados e estruturados como o BTG Pactual (típico banco de investimentos), a XP inc (plataforma de investimentos) e o Nubank (originalmente de cartões) colocam um tempero adicional neste xadrez e têm deixado a competição mais agitada. A XP, por razões já comprovadas, começou como uma fintech de investimentos há 20 anos e hoje detém 3,5 milhões de clientes e R$ 817 bilhões em ativos sob custódia. A meta é bater R$ 1 trilhão até dezembro deste ano. Agora, com seu banco de varejo, seus planos são ainda mais agressivos depois de um ano e meio de vida. “Além de tecnologia nova e moderna, contamos com clientes de investimentos, da alta renda ao private, com capacidade de compra, os quais a gente não quer que dependam de outras instituições financeiras para o dia a dia”, afirma José Berenguer, CEO do Banco XP.
A oferta do banco vai de crédito, cuja carteira fechou o segundo trimestre deste ano com R$ 6,8 bilhões, alta de 43% sobre o primeiro trimestre, passando por cartões e produtos que irá lançar, como câmbio, financiamento imobiliário e seguros. Berenguer explica que a tecnologia está transformando o sistema financeiro no mundo todo e que o BC no Brasil pressiona para que os agentes ofereçam mais opções de produtos, serviços e facilidades ao consumidor. Para ele, o PIX e o open banking são bons exemplos desse empoderamento do cliente. Essas iniciativas, segundo Berenguer, criam facilidades para comparação de preços e migração de uma instituição para outra, o que confere vantagens para instituições como a XP, já que os bancos tradicionais carregam tecnologias mais antigas e um número elevado de rede de agências físicas. E ainda tem a questão regulatória, que é mais leve para as fintechs.
O fato é que a presença das fintechs já vem comendo parte da receita de crédito dos bancos tradicionais, que encolheu, em média, 12% no primeiro semestre deste ano, conforme levantamento da Austin. “Embora elas sejam pequenas, tiram parte da receita dos bancos e estão roubando fatias também dos cartões de crédito. Elas estão incomodando ao não cobrarem por muitos serviços e terem aceitação das pessoas”, avalia Erivelto Rodrigues.
Tanto que os grandes bancos têm criado seus próprios bancos digitais, como fez o Bradesco com o Next. Rodrigues pontua, no entanto, que muitos bancos digitais operam no prejuízo e dependem de investimentos para ficarem em pé. Por isso, não vê sentido o Nubank, por exemplo, ser avaliado acima do valor de mercado do Itaú ou do Bradesco.
Mas é o que está acontecendo. O Nubank prepara seu IPO (oferta inicial de ações, na sigla em inglês) na bolsa eletrônica de Nova York, a Nasdaq, para este ano, e especialistas avaliam que possa vir a captar entre US$ 3 bilhões e US$ 5 bilhões com esta operação. O que lhe conferiria um valuation (valor de mercado) entre US$ 75 bilhões e US$ 100 bilhões, colocando-o entre as cinco instituições financeiras mais valiosas da América Latina. E tudo isso sem dar lucro.
A pergunta que analistas mais céticos fazem é: quando o banco atingirá o breakeven, quando custos e despesas operacionais se igualam à receita?. “A gente não pode ser muito específico. O Nubank não é uma instituição com modelo de negócios. Tem empresas de tecnologia que crescem sem modelo de negócios. O WhatsApp não ganhava nada até ser vendido”, observa Cristina Junqueira, sócia e cofundadora do Nubank, que tem nos seus 40 milhões de clientes o seu maior patrimônio. Base que confere relevância, especialmente em uma fase em que o consumidor está no foco das estratégias de qualquer mercado.
Cristina, do Nubank: recursos de fora para crescer no Brasil — Foto: Silvia Zamboni/Valor.
Talvez isso justifique o fato de ter recebido mais de US$ 1,1 bilhão em investimentos só neste ano. “Conceitualmente, hoje, o Nubank é um grupo internacional e tem operações na Colômbia, no México e no Brasil. Nossa captação sempre foi internacional. Por isso faz sentido fazermos o IPO fora do país”, afirma Junqueira. Parte desses recursos tem sido usada para acelerar o crescimento do banco por meio de aquisições. De 2020 para cá, foram cinco, sendo a última a Spin Pay, plataforma de pagamentos instantâneos. Em 2020, sua maior compra foi a Easynvest, corretora digital de investimentos.
Para os especialistas, o sistema financeiro nacional está vivendo um momento único de competição. “A indústria como um todo é a que mais investe em tecnologia e está em franca aceleração para gerar novas experiências e formas de atendimento do cliente. E o boom do surgimento de novos players força ainda mais esses investimentos”, observa Sergio Biagini, sócio e líder da indústria de serviços financeiros da Deloitte.
Só no ano passado, os bancos desembolsaram R$ 25,7 bilhões em tecnologias, sendo mais de 50% em ferramentas digitais, segundo estudo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) em parceria com a Deloitte. O executivo acredita que a chegada do open banking trará serviços adicionais, como a consolidação de informações para melhor aconselhamento financeiro e a troca de dados entre os agentes de mercado, com o consentimento do cliente, que deve ser usada como moeda de negociação de preços. “A questão do uso de dados é estratégica”, afirma Biagini.
O Bradesco, por exemplo, vem investindo em algoritmos, inteligência artificial (IA) e em análise de dados para ter maior assertividade na concessão de crédito e atribui a isso o avanço de 14% nos empréstimos e na diminuição do índice médio de inadimplência, que ficou em 2,5%, no primeiro semestre deste ano. “Estamos nos menores índices de inadimplência de nossa história, apesar do volume robusto de nossas operações”, conta André Cano, vice-presidente do Bradesco.
O banco está investindo R$ 6,2 bilhões em tecnologia neste ano, sendo R$ 2 bilhões em inovação, já que 98% das transações realizadas pelos seus clientes são feitas nos canais digitais. Deste total, 67% são pelo celular. O Bradesco foi um dos primeiros, entre os grandes, a optar por um banco digital próprio, o Next, e a criar um ecossistema, o Inovabra, que abriga em um mesmo espaço 8,5 mil startups (175 são residentes), 75 grandes empresas e 32 parceiros.
O fundo Inovabra, criado para investir nesses projetos, desembolsou R$ 150 milhões em 11 negócios, sendo R$ 70 milhões só no ano passado. Já a trajetória do Next está prestes a ganhar independência. Com 5,4 milhões de clientes, seu volume total transacionado cresceu 163% no primeiro semestre, comparado a igual período de 2020. “Estamos promovendo o desacoplamento do Next para ter mais agilidade. O mesmo deve ocorrer com o Bitz, nossa carteira digital, e com a corretora Ágora”, conta Cano.
Além de aumentar a concorrência, a expectativa dos grandes bancos com open banking é de que abrirá a possibilidade de se inserirem em cadeias a que hoje não estão conectados, como a de setores produtivos, e em marketplaces, vendendo-se como “bank as a service” (banco como serviço). Isso porque a economia mundial, segundo os especialistas, deve caminhar para um modelo ecossistêmico e oferecer produtos financeiros que deixaram de ser privilégio dos bancos. “Será quase uma comoditização dos produtos financeiros. Os bancos não competem mais entre si. A Magalu, por exemplo, oferece crédito para os clientes. Os bancos estão pesquisando outras formas de se inserirem em outras cadeias”, avalia Elias Goraieb, sócio sênior da consultoria McKinsey. Uma alternativa é ir às compras.
Foi o que o BTG fez. Optou pela aquisição do Pan para entrar no varejo de forma mais agressiva e atuar em uma frente que o banco nunca tinha experimentado: a baixa e média renda. “Queremos apoiar este cliente. Ele precisa de crédito para comprar carro ou moto ou outras aquisições. A estratégia do Pan é complementar e independente da nossa. Não vamos juntar o Pan e o BTG”, conta João Dantas, sócio e CFO do BTG Pactual.
O que chamou a atenção do BTG foi o rápido crescimento da base de clientes – hoje em 12 milhões – e da carteira de crédito do Pan, especialmente nas modalidades de veículos e consignado. A primeira avançou 43% nos últimos 12 meses encerrados em junho, para R$ 13,6 bilhões, enquanto o consignado chegou a R$ 15,4 bilhões, alta de 19%. A estratégia faz parte de um movimento de expansão do BTG que começou há pouco mais de um ano pela alta renda – cliente que conseguiu atingir por meio das parcerias com 500 agentes autônomos. “Nossa meta é fazer associações com agentes que tenham o nosso DNA. O BTG hoje tem crescimento compatível com as fintechs, só que somos lucrativos”, diz Dantas.
Dos bancos digitais, o Inter é um dos que têm a gama mais diversificada de produtos e serviços e com verticais abertas para o open banking. As inovações buscam ampliar as unidades de negócios atuais – dia a dia bancário, investimentos, seguros, shopping e crédito –, como a abertura de seu aplicativo para não correntistas que queiram fazer compras no seu shopping e ganhar cashback. “Estamos iniciando a expansão global pelos serviços não financeiros, como marketplace, que será nossa porta de entrada em novas geografias”, diz João Vitor Menin, presidente do Inter.
A intenção é se tornar uma plataforma que vá além dos produtos financeiros e atender os clientes de ponta a ponta – até a compra de passagens áreas ou de um tênis. Neste movimento, o recente investimento de R$ 2,5 bilhões feito pela Stone no banco, tornando-se acionista minoritário, com 5% das ações, ampliará a integração de grandes sellers e merchants.
É de olho nesta aceleração do mercado que o Itaú, maior banco privado da América Latina, mantém, desde 2015, o Cubo, hub de fomento ao empreendedorismo tecnológico, em parceria com a Redpoint eventures. Por meio de suas plataformas física e digital, o Cubo abriga mais de 400 startups e potencializa a conexão e a criação de negócios entre elas e grandes empresas, com a possibilidade de participação de investimentos, como da Wayra Brasil, da Liga Ventures e dos Anjos do Brasil.
Mas a estratégia de futuro vai além disso. O Itaú vê como vantagem competitiva manter a estrutura de agências físicas para atender o cliente onde e como ele quiser. “Tem gente que, para tomar decisões importantes, como comprar um imóvel e fazer investimentos, prefere um atendimento personalizado e presencial. É preciso atender esta necessidade”, afirma Renato Lulia, diretor de relações com investidores do Itaú Unibanco.
Com forte recuperação da carteira de crédito no primeiro semestre, o banco ainda mira produtos tradicionais, como o consignado, o empréstimo imobiliário e o de veículos, para avançar até o fim de 2021. Só no crédito imobiliário, o avanço foi de 44,4% na primeira metade do ano, totalizando R$ 70,5 bilhões. O que surpreendeu o executivo. “O nosso resultado operacional, por exemplo, foi de R$ 60,7 bilhões. Melhor até do que o de 2019”, conta Lulia.
Para o executivo, não dá para classificar todo mundo de fintech. Empresas como a XP, por exemplo – onde o banco estava investido há até pouco tempo –, ele chama de nova concorrência. Lulia vê ainda o open finance como via de mão dupla e tem dúvidas de seus impactos no longo prazo. “Em UK, as métricas de utilização do open banking pelos usuários não são positivas. Nem os preços estão baixando, nem a competição aumentou.”
Já no Banco do Brasil (BB), o open banking já é uma realidade. O BB vem se preparando desde 2017, quando lançou o portal Developers, com uma gama de serviços integrados por meio de APIs (software que integra diferentes sistemas). “Estamos avançados nisso e o nosso ‘core’ é relacionamento. No último trimestre, colocamos 1,4 milhão de clientes adicionais em atendimentos multidirecionados usando tecnologia e mapeando informações. Tenho 21,6 milhões de clientes ativos nos canais digitais, crescimento de 15% em 12 meses. O que mostra que estamos no caminho certo”, observa Daniel Alves Maria, gerente-geral de relações com investidores.
Para acelerar essa transformação, o BB prioriza investimento em startups com estrutura de inovação aberta. “Assim podemos testar novos modelos de negócios, produtos, serviços e tecnologias em um ambiente fora do banco. A ideia é acelerar o desenvolvimento de soluções e criar novas fontes de receitas e intercâmbio com as startups”, diz Alves Maria.