valor.globo.com – 02/12/2019.
Por Gustavo Loyola.
Competição trazida pelas fintechs pressionou os grandes bancos a relaxar os critérios de concessão de crédito.
Um dos maiores desafios para os reguladores financeiros sempre foi o de buscar o adequado equilíbrio entre os benefícios da inovação e a necessidade de manutenção da estabilidade financeira e da proteção ao consumidor. Historicamente, falhas no encontro desse ponto de equilíbrio estiveram por trás de algumas severas crises financeiras, levando ao indesejado fenômeno do “pêndulo regulatório”, prejudicial ao desenvolvimento da intermediação financeira e ao próprio crescimento econômico.
Tal desafio se mostra maior ainda no momento atual, com o surgimento e proliferação das fintechs cujo modelo de negócios se baseia na disrupção dos negócios financeiros tradicionais, o que implica, em ampla medida, em ameaça de disrupção da própria estrutura da regulação financeira posta em prática após a grande crise de 2008.
Competição trazida pelas fintechs pressionou os grandes bancos a relaxar os critérios de concessão de crédito
Vale relembrar que houve consenso global em considerar a excessiva tolerância dos reguladores em relação ao risco trazidos pelas inovações financeiras como uma das principais causas da crise financeira de 2008. Por causa disso, a regulação internacionalmente adotada a partir de então, observando as diretrizes do Forum Stability Board (FSB) e do Comitê de Supervisão Bancária da Basileia (BCBS), teve um viés marcadamente conservador e antidisruptivo.
Em trabalho publicado em fevereiro último, o FSB procurou avaliar os potenciais impactos das fintechs sobre a estabilidade financeira. Embora suas conclusões não tenham sido definitivas, a citada análise não descarta a possibilidade de a competição trazida pelas fintechs pressionar os bancos incumbentes a relaxar os critérios de concessão de crédito. Trata-se aqui da velha e polêmica questão, abordada amplamente na literatura econômica, de que na indústria bancária o aumento da competição pode em determinadas circunstâncias elevar o risco de maneira não-linear e ser prejudicial à estabilidade financeira.
Por outro lado, a criação de obstáculos regulatórios à inovação e às fintechs, com o pretexto de proteger a estabilidade financeira, não é uma boa política, tendo em vista os potenciais benefícios que as inovações recentes podem trazer para os consumidores dos serviços financeiros, inclusive sob o ponto de vista da inclusão no mercado de pessoas que não têm hoje acesso a tais serviços.
Tendo em vista as incertezas sobre os impactos potenciais das fintechs sobre a estabilidade financeira, e considerando ser desejável não ter a estrutura regulatória como obstáculo à inovação, a melhor política parece ser a de adaptar gradualmente a regulação existente de maneira a permitir a introdução de inovações e a entrada de novos ofertantes de serviços financeiros no mercado, sem abrir mão de três pilares fundamentais da regulação financeira: proteção ao consumidor, combate à lavagem de dinheiro e estabilidade sistêmica.
Uma das estratégias que vem sendo adotada pelos reguladores financeiros é o da criação de “sandboxes”, para permitir a introdução controlada de inovações, sob monitoramento próximo do supervisor. A ideia, adotada também no Brasil pelo Banco Central, parece boa, pois permite que a introdução eventual de regulação específica ocorra após um maior conhecimento do regulador sobre as novas práticas e produtos trazidos ao mercado. Porém, uma questão ainda a ser respondida pelos reguladores diz respeito ao seu apetite para permitir que tais “sandboxes” possam ser utilizadas pelas instituições incumbentes, notadamente por aquelas consideradas sistemicamente importantes.
Outra estratégia, não excludente do uso de “sandboxes”, é a da proporcionalidade da regulação, considerados o porte e a conectividade da instituição regulada. Sob esse princípio, instituições com menor potencial de contágio sobre o mercado operariam sob a égide de uma regulação mais “leve” e menos exigente. Em linhas gerais, essa estratégia alinha-se com os princípios adotados pelo BCBS após a crise de 2008, que instituíram a categoria de bancos sistemicamente importantes – SIBs para os quais a regulação e supervisão tornaram-se mais exigentes.
Porém, o uso dos princípios mencionados no parágrafo anterior para lidar com a introdução das fintechs no mercado deve ser cautelosa e restrita a certos aspectos prudenciais, não abrangendo campos como o da proteção aos direitos do consumidor e do combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo (PLD). O risco dos exageros no emprego da “assimetria regulatória” aumentam quando essa abordagem é considerada como elemento central para o objetivo de incrementar a competição e reduzir a concentração no mercado. Não é admissível, por exemplo, que regras de PLD sejam mais frouxas para novos entrantes ou instituições menores, tendo em visa o risco elevado de arbitragem regulatória e de contaminação do mercado.
Gustavo Loyola, Doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do BC do Brasil – Sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo