https://valor.globo.com/opiniao/coluna – 12/11/2025
Por Jefferson Alvares (*)
Atualizar a legislação do SFN é condição para aumentar a eficácia da política monetária.

http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%204.595-1964?OpenDocument
A Lei 4.595, de 1964, é a espinha dorsal do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Apesar da sua importância histórica, seis décadas de reformas parciais e assistemáticas transformaram-na num mosaico legislativo, com camadas sobrepostas de normas novas e antigas que geram insegurança jurídica e ineficiência operacional. Nenhum aspecto ilustra melhor essa anacronia do que os recolhimentos compulsórios, instrumentos que acumulam funções potencialmente contraditórias – entre si, com o mandato legal do Banco Central (BC) e com o moderno regime prudencial.
Os recolhimentos compulsórios são a fração dos depósitos captados que os bancos devem manter no BC. São um instrumento estrutural de política monetária, utilizado menos frequentemente do que as operações de mercado aberto, voltadas para o ajuste fino da liquidez bancária. Ao imobilizar parte dos recursos do sistema, o BC controla a oferta de crédito e a liquidez global, ancorando a inflação. Em economias desenvolvidas, sua função é apenas essa. No Brasil, esses instrumentos atuam também na política de crédito, na política macroprudencial, e na regulação microprudencial.
O direcionamento de crédito decorre da autorização da Lei 4.595 para que o Banco Central adote exigências de compulsório diferenciadas conforme a região, o setor econômico ou a natureza das instituições prestamistas, utilizando o instrumento monetário para fomento regional ou setorial. Essa permissão reflete o modelo desenvolvimentista adotado em 1964, o qual conjugava as políticas monetária e de crédito, implementadas pelo BC em conjunto com o Banco do Brasil (BB).
Ocorre que esse arranjo se tornou incompatível com o mandato legal contemporâneo do BC. A lei que consagrou sua autonomia funcional fixou como seu objetivo fundamental a estabilidade de preços. Seus objetivos complementares – estabilidade e eficiência do sistema financeiro, suavização do ciclo econômico e promoção do pleno emprego – são todos voltados para a macroestabilidade. Não há, entre os objetivos do BC, qualquer espaço para atuar como agente de fomento econômico, função própria da política fiscal e dos bancos e fundos de fomento.
O SFN precisa de novo quadro legislativo. Essa modernização deve contemplar uma lei bancária, que regule a intermediação financeira sob a ótica prudencial, e uma lei orgânica do BC, que discipline sua estrutura e suas funções típicas, as políticas monetária e cambial.
A persistência dos dispositivos que permitem usar os compulsórios para fins de fomento regional ou setorial pode conflitar com o objetivo de estabilidade de preços. De um lado, a política monetária busca conter a inflação; de outro, as deduções regionais ou setoriais injetam liquidez no sistema. O resultado é a conclusão que Jan Tinbergen formulou há décadas: um mesmo instrumento não pode servir a dois objetivos independentes sem sacrificar a eficácia de ambos. A experiência brasileira no período 2011-2016, quando o uso agressivo dos compulsórios para expandir o crédito contribuiu para o descontrole inflacionário, é um testemunho eloquente dos riscos dessa sobrecarga de funções.
Mais recentemente, os compulsórios passaram a ser usados no Brasil também como instrumentos macroprudenciais, para mitigar riscos à estabilidade do sistema financeiro. O BC eleva os recolhimentos para conter a expansão excessiva do crédito, e relaxa a exigência para fornecer liquidez durante crises. Embora legalmente permitido, este uso também é problemático, colocando a estabilidade financeira e a estabilidade de preços em rota de colisão. Na prática internacional moderna, a cada uma dessas finalidades correspondem instrumentos específicos: recolhimentos compulsórios para a política monetária e ferramentas como capital contracíclico, limites de endividamento e exigências de liquidez para a política macroprudencial.
A quarta finalidade dos compulsórios no Brasil é como instrumento microprudencial, para a contenção da alavancagem das instituições financeiras – isto é, do seu endividamento excessivo. A Lei 4.595 limita os depósitos captados a 15 vezes o capital das instituições financeiras, devendo o excedente ser recolhido ao BC. Essa regra é tecnicamente defasada, uma vez que desconsidera outras fontes de endividamento. Por isso, caiu em desuso com o advento do acordo de Basileia III.
Ocorre que o dispositivo legal continua em vigor, levando à coexistência de dois regimes jurídicos distintos de alavancagem, com resultados potencialmente divergentes em grande escala. Para um banco que se financie apenas por depósitos, a regra legal impõe uma alavancagem máxima de 16:1. Já Basileia III exige uma razão mínima de capital de 3% dos ativos totais, equivalente a uma alavancagem de 33:1 – mais que o dobro. Embora a regra de Basileia III prevaleça na prática regulatória, a permanência do dispositivo original na lei cria uma insegurança jurídica latente.
A Lei 4.595 transformou-se num repositório de “fósseis normativos”: dispositivos tacitamente revogados, como o uso dos compulsório para fins de fomento; remissões a competências extintas, como a competência do BB para receber os depósitos voluntários das instituições financeiras; e normas superadas na prática regulatória, como o limite à captação de depósitos em relação à base de capital. Esta situação dificulta o trabalho do intérprete e compromete a segurança jurídica. As funções múltiplas dos compulsórios refletem essa perda de sistematicidade ao longo das décadas.
O SFN precisa de um novo quadro legislativo. Seguindo a prática internacional, essa modernização deve contemplar uma lei bancária, que regule a intermediação financeira sob a ótica prudencial, e uma lei orgânica do BC, que discipline sua estrutura e suas funções típicas de autoridade monetária, como as políticas monetária e cambial. Atualmente, o Brasil é o único país do G20 cujo banco central não dispõe de uma lei orgânica própria.
Como paliativo, é indispensável uma consolidação legislativa que elimine da Lei 4.595 as normas revogadas, sem objeto ou em desuso. A consolidação deve também separar o uso dos recolhimentos compulsórios para fins de política monetária e macroprudencial – por exemplo, estabelecendo uma componente principal para a liquidez estrutural e uma variável para o risco sistêmico.
Atualizar a legislação do SFN não é mero exercício de técnica jurídica. É condição para aumentar a eficácia da política monetária, consolidar a autonomia do BC e alinhar o Brasil aos padrões de governança econômica do século 21. Sessenta anos depois, a reforma é inadiável.
(*) Jefferson Alvares é procurador do Banco Central. Foi advogado do Fundo Monetário Internacional e membro do secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB). Escreve em caráter pessoal.







