https://valor.globo.com/legislacao – 15/08/2022.
Por Daniel Carnio Costa
A dispensa da CND, que ainda é determinada em algumas decisões judiciais, decorre da aplicação inercial de jurisprudência já superada.
Discute-se, atualmente, a razão pela qual a jurisprudência recente dos nossos tribunais tem divergido quanto à exigência da Certidão Negativa de Débitos fiscais (CND) para a concessão da recuperação judicial de empresas. Seria insegurança jurídica decorrente da reforma da lei ou seria o fenômeno identificado como jurisprudência inercial? Vejamos.
Na redação original de 2005, o Fisco brasileiro pretendeu obter uma posição superprivilegiada: os créditos fiscais não seriam afetados pelo plano de recuperação, nem suas execuções se suspenderiam. E mais. A empresa devedora ainda teria de quitar suas dívidas fiscais ou aderir ao plano de parcelamento fiscal como condição para que o Poder Judiciário concedesse a oportunidade da recuperação judicial da devedora.
A dispensa da CND, ainda determinada em decisões, decorre da aplicação inercial de jurisprudência já superada.
Na prática, o equacionamento da dívida fiscal (pelo pagamento ou pela adesão à programa de parcelamento) era pressuposto para que todos os demais credores pudessem renegociar com a devedora a fim de manter o funcionamento da empresa em benefício de todos.
Ocorre que o artigo 155-A do Código Tributário Nacional (CTN) determinou ao legislador que fosse criado um programa especial de parcelamento de dívidas tributárias para empresas em recuperação judicial. Isso porque, na prática, as empresas em recuperação judicial acumulam dívidas tributárias de grande monta e não possuem condições para obter a CND, nem para aderir a um programa comum de parcelamento.
Entretanto, até 2014, o legislador não criou nenhum programa especial de parcelamento tributário para empresas em recuperação judicial.
Nesse sentido, o Poder Judiciário teve de optar: exigia a CND, o que inviabilizaria a concessão de quase a totalidade das recuperações judiciais; ou dispensava a CND diante da inexistência de alternativa legal de equacionamento do passivo fiscal, viabilizando a reestruturação de muitas empresas em recuperação judicial, com preservação de suas atividades, dos empregos, da circulação de riquezas, produtos e serviços por elas criados.
Corretamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a dispensar a CND, sob o argumento de que não havia alternativa legal de equacionamento do passivo fiscal e de que a exigência da quitação dos tributos praticamente extinguiria o uso da recuperação judicial no Brasil, em prejuízo de todos os benefícios econômicos e sociais decorrentes da preservação 1- das empresas.
O Fisco, todavia, ficou totalmente desprotegido, pois não participava do concurso de credores, não recebia em decorrência do plano – pois não constava lá – nem conseguia receber por fora da recuperação judicial, uma vez que os ativos da devedora eram protegidos como condição de manutenção de suas atividades.
Na tentativa de se resolver esse impasse, foi editada a Lei nº 13.043/14, que incluiu o artigo 10-A na Lei nº 10.522/02, criando um programa de parcelamento especial de dívidas fiscais para empresas em recuperação judicial.
Entretanto, esse programa especial, na prática, criava condições mais gravosas para as empresas em recuperação judicial quando comparados com os programas comuns já existentes. Ou seja, esse programa não atendia à intenção do legislador de criar uma alternativa mais adequada à situação de uma empresa em recuperação judicial.
Por esse motivo, a jurisprudência dos tribunais continuou a dispensar a apresentação da CND como condição de concessão da recuperação judicial, diante da inexistência de alternativa válida ou viável de equacionamento do passivo fiscal.
A solução veio somente com a edição da Lei nº 14.112/20, que criou alternativas válidas e viáveis de equacionamento do passivo fiscal para empresas em recuperação judicial. De acordo com a nova legislação, há um programa de parcelamento mais favorável às devedoras em recuperação judicial. Além disso, a reforma criou a possibilidade da transação fiscal, já regulamentada pelo Fisco, bem como a possibilidade do negócio jurídico processual nas execuções fiscais.
Nesse sentido, de acordo com a legislação, em vigor desde janeiro de 2021, não mais subsiste o fundamento da dispensa da CND pelos tribunais pois, ao menos em tese, agora a lei traz alternativas válidas e eficazes de equacionamento do passivo fiscal para as devedoras em recuperação judicial.
Somente em situações específicas, quando houver uma resistência injustificada do Fisco à utilização das alternativas legais, é que o Poder Judiciário poderá dispensar a CND a fim de fazer prevalecer o interesse social, com preservação da empresa e de todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade.
A dispensa da CND, que ainda é determinada em algumas decisões judiciais, decorre da aplicação inercial de jurisprudência já superada. É preciso que o Poder Judiciário esteja atento ao novo marco legal, reservando a dispensa da CND às situações excepcionais e reveladoras de indevida resistência do Fisco na aplicação das alternativas legais criadas pela reforma para equacionamento do passivo fiscal das devedoras em recuperação judicial.
Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (2021/2023), membro do Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências do CNJ (Fonaref) e presidente e fundador do Fórum Nacional dos Juízes de Competência Empresarial (Fonajem)
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