https://valor.globo.com/opiniao/coluna – 09/12/2025
Por Gabriel Araujo Souto e Antenor Madruga (*)
Pacote de resoluções do Banco Central disciplina o setor.
Foto: Chris Ratcliffe/Bloomberg
O pacote de Resoluções 519/520/521 do Banco Central marca a passagem definitiva do “empreendedorismo tolerado” para o “compliance exigível” no mercado de cripto no Brasil e, no centro dessa virada, está a combinação entre prevenção à lavagem de dinheiro, integração ao regime cambial e uma “travel rule” nacional com cronograma e escopo próprios.
A resolução do BC nº 520, ao disciplinar a constituição e o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs), transforma obrigações antes difusas em deveres operacionais inequívocos: conhecer clientes e contrapartes, registrar e conservar trilhas de auditoria, e compartilhar informações de origem e destino de recursos de forma tempestiva e padronizada. Não é mero transplante de boas práticas: é a ancoragem da indústria cripto no mesmo perímetro de PLD/FTP que já pauta bancos e instituições de pagamento.
O art. 44 da Resolução nº 520 é explícito: PSAVs devem observar integralmente a regulamentação de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e da proliferação de ADM; e, nas operações com ativos virtuais, fornecer à instituição receptora informações de originador e beneficiário, alinhando o setor ao espírito da Recomendação 16 da FATF, a travel rule. Na prática, isso exige que cada transação carregue metadados confiáveis sobre quem envia e quem recebe, reduzindo as zonas de anonimato operacional que historicamente alimentaram fraude, scams e misturas de fundos ilícitos. É uma guinada que aproxima o Brasil das atualizações mais recentes da FATF para pagamentos e ativos virtuais, e que tende a diminuir falsos positivos com padronização de mensagens e campos obrigatórios.
Se o art. 44 é a espinha dorsal, os “músculos” estão nas vedações e controles que coíbem a ofuscação deliberada de trilhas financeiras. A Resolução nº 520 proíbe, por exemplo, o uso de misturadores, embaralhadores e robôs destinados a ocultar autores ou beneficiários, e obriga as PSAVs a reportarem ao BC dificuldades de monitoramento quando a raiz do problema estiver em práticas de outras instituições. Esse desenho cria incentivos corretos: quem insiste em tecnologias de opacidade torna-se contraparte indesejável; quem coopera e compartilha informações ganha acesso estável ao sistema bancário. O resultado esperado é uma rede menos permeável a layering e placement sofisticados, reforçando a integridade do SPB e do mercado de câmbio.
Do lado cambial, a resolução do BC nº 521 complementa a agenda ao trazer atividades de PSAVs para dentro do perímetro de câmbio e capitais, conectando fluxos de cripto a regras clássicas de finalidade, capitais brasileiros no exterior e capital estrangeiro no país. A consequência é dupla: de um lado, mais clareza sobre como classificar operações e prestar informações mensais por meio do novo Anexo II-A; de outro, menos espaço para arbitragem regulatória entre “pagamento em cripto” e “transferência internacional” travestida. Ao exigir documentação de contrapartes estrangeiras sob supervisão efetiva e ao vedar compra/venda com pagamento em moeda estrangeira, o BC reduz pontos cegos típicos de books internacionais e de OTCs opacos. Isso fortalece a travel rule doméstica, pois amarra a narrativa de cada operação à finalidade econômica correta e a dados verificáveis.
A aposta do regulador, em suma, é que “compliance compartilhado” desarma o incentivo a estruturas opacas. Há custo diário transacional, de provas de reserva, de trilhas de TI e de governança, e ele recai sobretudo sobre players lean que historicamente escapavam de auditorias profundas. Mas o ganho sistêmico é expressivo: menos “debanking defensivo” por parte dos bancos, mais uniformidade na diligência de carteiras autocustodiadas, e interoperabilidade informacional que dialoga com o padrão internacional, inclusive após as revisões de 2025 da FATF.
O risco a monitorar é a migração de usuários para canais P2P não supervisionados se a implementação for dura demais; daí a importância de manter a proporcionalidade, de publicar guias técnicos e de calibrar a cooperação com jurisdições parceiras, especialmente na fase internacional da troca de informações. Se a indústria souber ler o momento, o novo arcabouço pode ser um selo de confiabilidade que desbloqueia parcerias bancárias, reduz custo de capital e viabiliza casos de uso legítimos, inclusive os que passam por stablecoins referenciadas em moeda fiduciária, agora sob regras explícitas de finalidade, reporte e capitais. Se resistir com soluções de ofuscação ou de “compliance de fachada”, a própria resolução nº 520 já antecipa o desfecho: nomes expostos à objeção pública nos processos de autorização, cancelamentos e desconexões operacionais a partir de marcos objetivos. Em termos simples: a criptoeconomia brasileira entra em 2026 com menos romance e mais governança.
Ao estruturar a travel rule em fases sucessivas, conforme os arts. 44 e 89 da resolução nº 520, o Banco Central deixa claro que não busca conter a inovação, mas submetê-la a padrões institucionais de confiança e transparência. A estratégia é deliberada: primeiro, consolidar o diálogo entre PSAVs nacionais através da resolução do BC nº 519, que disciplina os seus processos de autorização e supervisão; depois, projetar essa interoperabilidade para o plano internacional. Na primeira etapa, o mercado deve provar que consegue rastrear fluxos domésticos com precisão. Já na segunda, de caráter internacional, o desafio será compartilhar dados com entidades estrangeiras parceiras, implementando mecanismos que assegurem o fluxo transfronteiriço de informações, um dever que se tornará plenamente obrigatório em 2 de fevereiro de 2028, após o prazo de 365 dias da conclusão da fase inicial.
Durante o período de adaptação, o regulador concede alguma flexibilidade através de autodeclarações, análises baseadas em risco e documentação eletrônica, mas deixa explícito que essa tolerância é temporária. Trata-se de um ponto de inflexão: ou o setor amadurece e se integra ao regime global de rastreabilidade, ou ficará à margem do sistema financeiro formal. A travel rule, como delineada na resolução nº 520, não é apenas mais uma norma de compliance; é o divisor entre um ecossistema informal, marcado pela opacidade, e um mercado de criptoativos que aspira legitimidade internacional. A partir de 2028, quem não falar a língua da transparência simplesmente não participará da conversa.
(*) Gabriel Araujo Souto, mestre em Direito pela London School of Economics, é consultor da Madruga BTW.
(*) Antenor Madruga, doutor em Direito pela USP, é sócio da Madruga BTW.







