https://valorinveste.globo.com/blogs/estevao-scripilliti/coluna – 21/01/2025.
Por Estevão Scripilliti*
Será que todas essas inovações digitais em meios de pagamentos, em especial o Pix, estão bem incorporadas em nossos modelos de inflação e de previsão econômica?
De férias em uma praia relativamente isolada do Nordeste, tentei pagar um sorvete com dinheiro físico. O sorveteiro não tinha troco, nem R$ 5, nem R$ 10, nem R$ 20. “Só recebo Pix e cartão”, enunciou. “Dinheiro físico hoje em dia é difícil de aparecer”. Não é novidade para ninguém o quanto passamos por uma revolução tecnológica dos meios de pagamento no Brasil nos últimos anos, mas o exemplo do sorveteiro é emblemático da profundidade dessa revolução.
Curioso sobre a dinâmica dos meios de pagamento no dia a dia do sorveteiro, perguntei a ele como era sua rotina de recebimentos e pagamentos. Ele discorreu por alguns minutos sobre o envio de Pix para compra da encomenda dos próximos dias. Uma parte da receita também é enviada por Pix para sua família fazer as compras cotidianas e pagar as contas automaticamente. Enfim, uma cadeia de transações sucessivas e quase automáticas originadas da venda diária de algumas dezenas de sorvetes.
Coloquemos agora essa dinâmica em escala avassaladora de negócios Brasil afora, com milhões de transações diárias e reflitamos sobre seus possíveis impactos macroeconômicos.
- Um primeiro efeito natural está relacionado ao aumento da velocidade de circulação da moeda. A teoria quantitativa da moeda tem uma equação simples, segundo a qual preço x bens e serviços = quantidade de moeda em circulação x velocidade de circulação da moeda.
Se a velocidade de circulação da moeda aumenta de forma intensa e rápida, considerando que a capacidade produtiva (q) é limitada no curto prazo, implica dizer que há uma força nova de pressão de preços potencial na economia, podendo ser uma fonte inflacionária adicional. Será que todas essas inovações digitais em meios de pagamentos, em especial o Pix, estão bem incorporadas em nossos modelos de inflação e de previsão econômica?
Um segundo impacto relevante é o volume de informações hoje possíveis de se obter sobre cada consumidor.
Os milhões de transações diárias via Pix e outros meios de pagamento permitem conhecer o seu cliente de forma profunda, com seus hábitos de consumo, suas fontes de renda, suas cadeias de relacionamento e mesmo seu ciclo de vida cada vez mais mapeados. Dessa massa de dados, deriva a possibilidade de ofertas de produtos e serviços financeiros cada vez mais personalizados, aderentes e assertivos para a necessidade de cada cliente. Isso gera um potencial extraordinário de ganho de eficiência e melhor precificação para várias cadeias, além de multiplicar os pontos de contato possíveis para a oferta de soluções financeiras em cada “evento” transacional dos consumidores.
- Um terceiro ponto é o ganho potencial de profundidade da bancarização e do acesso ao crédito, aos seguros, investimentos e demais instrumentos financeiros.
Um volume maior de transações e informações, assim como a facilidade de abertura de contas digitais, amplifica muito o universo de transações financeiras possíveis e tende a democratizar cada vez mais o acesso para a maioria da população, criando uma dinâmica de menor restrição e barreira à entrada, mais competição, menor risco de antisseleção e, como fim, uma demanda agregada maior.
Aqui, a depender da capacidade de reação da oferta produtiva, pode se tornar mais PIB potencial, o que acredito ser o caso, ao menos parcialmente. De outro lado, se a oferta de outros bens e serviços não avançar na mesma velocidade dessa revolução financeira no Brasil, talvez haja uma nova força inflacionária temporária desse choque de demanda agregada advindo das inovações financeiras em curso. Não dá para exaurir aqui toda a reflexão sobre os impactos dessas transformações profundas dos meios de pagamentos e das relações financeiras digitais, senão meu sorvete irá derreter.
Até a próxima!
*Estevão Scripilliti é diretor da Bradesco Vida e Previdência.
Estevão Scripilliti — Foto: Arte sobre foto de Divulgação