https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/coluna – 09/10/2023.
Por Guy Almeida Andrade*, Para o Valor Investe — São Paulo.
A cada episódio de fraude corporativa uma pergunta ecoa: para que serve a auditoria independente? E surgem outros questionamentos: terá o auditor falhado em sua missão? Terá o auditor perdido sua independência? Terá o auditor negligenciado os riscos do ambiente de controles internos do cliente? E, por fim, terá o Comitê de Auditoria falhado no seu papel de preservar a independência e a objetividade do auditor independente?
A cada episódio de fraude corporativa uma pergunta ecoa: para que serve a auditoria independente? Essa pergunta surge nas conversas informais, mas para espanto, também surge nos mais diferentes extratos do mundo corporativo. Pessoas que deveriam conhecer o que é a auditoria independente acabam por descobrir, ou assumir, que não se preocupam muito com ela. E esse é o primeiro problema.
Mas, por outro lado, certos comentários e críticas são bastante pertinentes: terá o auditor falhado em sua missão? Terá o auditor perdido sua independência? Terá o auditor negligenciado os riscos do ambiente de controles internos do cliente?
Mas poucos que observam o problema pelo ângulo da governança corporativa levantam questões do tipo: terá o Comitê de Auditoria falhado no seu papel de preservar a independência e a objetividade do auditor independente?
Como se vê, há várias maneiras de se encarar esse problema e, muitas vezes, todas elas estão presentes quando problemas surgem. Como aprendemos na administração de riscos, o encadeamento de problemas é que acabam por materializar os riscos com grande impacto.
Todos sabemos que o papel da auditoria independente é o de atestar ao mercado que as demonstrações contábeis preparadas e divulgadas pela companhia estão de acordo com a prática contábil vigente, e que seus números estão adequados. A auditoria independente serve apenas para que aqueles que vão manusear as demonstrações financeiras estejam confortáveis com a razoabilidade da informação em suas mãos e, a partir daí, as examinem como bem entenderem.
Mas o mercado acompanha a evolução da auditoria independente? Os administradores utilizam o potencial da auditoria independente? Os responsáveis pela governança interagem suficientemente com os auditores independentes? Chego a apostar que, se pesquisa for feita, será grande o número de respondentes que não conseguirão enxergar o propósito da auditoria como aqui descrito.
Conforme expresso no Ocupacional Fraud 2022: a Report to the Nations, da ACFE, 82% dos respondentes ao serem indagados sobre que controles existiam em sua organização para minimizar o risco de fraude, indicaram a existência de auditoria independente. Essa resposta demonstra, como desconfiamos, um certo desconhecimento do papel do Auditor Independente.
Nossa experiência em Comitês de Auditoria e fóruns de governança corporativa, também indica que algumas pessoas desse meio não estão familiarizadas com o propósito da auditoria independente e os riscos que o auditor enfrenta na condução de seu trabalho, muito menos na responsabilidade do Comitê de Auditoria de, em certa medida, proteger e apoiar o auditor independente.
Todos os administradores e os responsáveis pela governança querem auditores com credibilidade para atestarem suas demonstrações financeiras, mas será que alguns desses administradores querem de fato demonstrações financeiras “adequadas” conforme as normas contábeis?
A pergunta é maldosa, mas algumas vezes há discussões desgastantes com os auditores porque a administração insiste em suas interpretações largas da norma vigente, espremendo os auditores para que acompanhem sua interpretação exagerada da norma, apesar de terem escolhido os auditores mais respeitados do mercado para atestar suas práticas. É esquizofrenia ou má fé. O primeiro caso é tratável. Já o segundo, requer muita cautela e talvez nosso distanciamento.
São nessas situações que os Comitês de Auditoria têm sua importância ressaltada, mas algumas vezes, nessas situações, já vimos o Comitê de Auditoria falhar. Conhecemos casos em que o Comitê de Auditoria tomou partido da administração e ajudou na pressão contra o auditor independente. Ou, em outra situação, em que o comitê de auditoria não deu atenção ao assunto e não arbitrou o desencontro de opiniões entre administração e o auditor independente.
Mas apesar de ser singela a missão dos auditores independentes, para se chegar à conclusão sobre a adequação, ou não das demonstrações financeiras o trabalho é árduo. O caminho é longo, labiríntico e diferente em cada ambiente, ainda que de empresas do mesmo setor. O estágio de maturidade dos controles é diferente de empresa para empresa. As prioridades dos administradores também são diferentes e essas prioridades, em geral, são o que acabam por definir o orçamento dedicado às áreas de compliance, controles internos e TI. Pouca verba para essas áreas, pode gerar controles frágeis e riscos de propagação de erros.
Mas não é apenas isso. Algumas vezes, o auditor, para chegar a sua conclusão, terá que vencer obstáculos, armadilhas e cortinas de fumaça armados pela administração, justamente onde o ambiente é tóxico. Não há cálculo de resistência de materiais que permita vislumbrar o ponto de ruptura.
Acresça-se a esses problemas a deterioração dos honorários de auditoria iniciada quando da implantação do rodízio de firmas no Brasil. Honorários adequados são fundamentais para a qualidade das auditorias e essa é uma das preocupações que o Comitê de Auditoria precisa ter na sua agenda.
Exceto por um, os membros do Comitê de Auditoria não precisam ser especialistas em questões de auditoria independente, mas é fundamental que tenham familiaridade com o papel da auditoria independente e qual a relação do Comitê de Auditoria com o auditor independente. A ação do Comitê de Auditoria se inicia desde a contratação do Auditor Independente, a definição da remuneração no contrato, o conhecimento sobre seus métodos para garantir sua independência, seus processos de treinamento e manutenção da excelência.
Passa pela equipe designada para o trabalho, os riscos identificados pelo auditor e a maneira pela qual pretende tratar esses riscos e concluindo pelos eventuais problemas, diferenças, melhorias de controles identificados, bem como a opinião sobre as demonstrações financeiras. Isso tudo requer contato frequente do Comitê de Auditoria com o auditor independente. Mas será que isso está ocorrendo nas salas de reunião dos Comitês de Auditoria?
Não queremos isentar os auditores independentes de eventuais falhas nos processos da auditoria independente, mas elas, muitas vezes, são frutos de uma série de falhas no ambiente de governança da empresa, com controles internos insuficientes, interferência dos administradores sobre a rota de governança corporativa, algumas vezes do boicote deliberado ao trabalho do auditor e, até inépcia de alguns membros de Comitês de Auditoria.
A auditoria independente não está ultrapassada, ao contrário, é mais necessária do que nunca e vem se modernizando. Mas se queremos auditorias mais seguras, não basta pressionarmos os auditores, que por certo têm que ter compromisso com a qualidade de seu trabalho e de sua opinião sobre as demonstrações financeiras. Precisamos, também, demandar a aplicação real das melhores práticas de governança corporativa. Precisamos exigir que os Conselhos de Administração e os Comitês de Auditoria cumpram conscientemente seu papel com diligência, seriedade e segurança. Não basta existir políticas e normas. Há que se aplicá-las na sua integralidade.
* Guy Almeida Andrade é auditor independente e membro de Conselhos de Administração, Comitês de Auditoria e Conselhos Fiscais.
Guy Almeida Andrade — Foto: Divulgação