https://valor.globo.com/empresas/noticia – 12/01/2022.
Por: Nelson Niero, Valor — São Paulo.
As firmas de contabilidade dizem, em sua defesa, que o auditor das demonstrações financeiras não é um investigador de fraudes. Sua função é confirmar se os dados fornecidos estão dentro das normas contábeis.
Foto: Gustavo Lacerda/Divulgação.
Número revelado pela Americanas, R$ 20 bilhões que não estavam nos livros, é maior que o patrimônio líquido em setembro e quase o dobro do valor de mercado da companhia.
Nas orações que fazem todas as noites antes de dormir, os auditores pedem para que nenhum escândalo apareça no dia seguinte. Não que eles aconteçam todos os dias. O problema é que quando acontecem têm um poder fenomenal de quebrar empresas e arrastar reputações. E os auditores independentes vivem de suas reputações.
Na história recente, o caso mais emblemático é da empresa americana de energia Enron, no começo da década de 2000. Por seis anos consecutivos eleita a empresa mais inovadora pela revista “Fortune”, ela escondeu as dívidas dos acionistas em entidades fora do balanço, foi à falência e levou junto seu auditor, a Arthur Andersen, então considerada a melhor firma de contabilidade e auditoria do mundo. A maior ironia é que, tempos depois, ela foi inocentada pela Justiça, que talvez tenha acertado, mas como de costume tardou. Os clientes já haviam fugido e os sócios foram para a concorrência. As “Big Five” tornaram-se as “Big Four” e conseguiram manter-se assim até hoje.
A Enron não foi um caso isolado, nem a Andersen foi a única auditoria acusada de deixar passar uma fraude de grandes proporções. Houve casos ainda maiores como o da Worldcom, apenas um ano depois. Pelo arrojo, pela frequência e pelos detalhes escabrosos, parecia que estávamos numa terra sem leis, com empresas em busca de brechas para esconder alguns bilhões dos acionistas e aumentar o bônus de fim ano com resultados espetaculares, mas falsos.
A reação dos poderes constituídos foi avassaladora. Uma lei (Sarbannes-Oxley) obrigou os executivos a se responsabilizarem individualmente pelas informações das demonstrações financeiras e aumentou as penas para as condutas ilícitas. Para os auditores, foi o fim de da autorregulação e partir de então eles seriam obrigados a receber de tempos em tempos a visita dos fiscais de um órgão (PCAOB) criado para mantê-los dentro dos padrões de qualidade.
Acuados pelos reguladores e atormentados por perguntas recorrentes de acionistas, jornalistas e especialistas de ocasião — “para que serve a auditoria?” —, as firmas de contabilidade e os seus órgãos de representação montaram a sua defesa com base na premissa de que o auditor das demonstrações financeiras não é um investigador de fraudes. Sua tarefa é confirmar se os dados fornecidos pela administração da empresa auditada estão dentro das normas contábeis em vigor. Obviamente, ele não poderia ignorar uma fraude se as evidências surgissem durante os trabalhos de auditoria contábil. Mas essa não é a sua função precípua.
Outro argumento, que complementa o primeiro, é que é muito difícil o auditor descobrir uma fraude se o alto escalão da empresa estiver envolvido nela. Quem faz o balanço são os administradores e, com alguma audácia e criatividade, eles podem jogar números daqui para lá, apresentar ativos marombados e embelezar alguns passivos. A farsa pode durar algum tempo até que alguém de fora, uma mudança de chefia, por exemplo, traga o esquema à tona.
Não se tem ainda os detalhes do que aconteceu com a Americanas. O fato é que valor revelado, R$ 20 bilhões que não estavam nos livros, é grande o bastante em qualquer moeda e em qualquer lugar do mundo para ser um escândalo de grandes proporções. Esse número é maior que o patrimônio líquido em setembro e quase o dobro do valor de mercado da companhia antes do caso vir à tona, cerca R$ 11 bilhões. Na tarde da quinta-feira, a varejista já havia perdido mais de R$ 8 bilhões, numa queda de 80%.
O que precisa ser explicado é por quê essa operação comum — e relevante — de financiamento usada por varejistas não recebeu mais atenção dos auditores.
O erro da empresa pode ter sido contabilizar a chamada operação de “risco sacado” na conta de fornecedores, um passivo não oneroso, em vez de lançar como dívida na rubrica de empréstimos e financiamentos, que é a base para calcular os indicadores de endividamento usados pelos gestores, pelos analistas, pelos bancos credores, pelas agências de risco, enfim, o tal mercado.
Na última auditoria completa, em 2021, a PwC, que assumiu a função em outubro de 2019, no lugar da KPMG, aprovou as demonstrações financeiras da companhia sem ressalvas.
Além da opinião geral, os auditores destacam os principais assuntos de auditoria, temas considerados mais relevantes durante o trabalho. Foram cinco pontos de atenção, nenhum deles relacionado às falhas contábeis comunicadas na quarta-feira pela empresa: reestruturação societária, avaliação do valor recuperável do ativo intangível, combinação de negócios, contingências fiscais, trabalhistas e cíveis e incidente cibernético. Procurada, a PwC disse que não comenta balanços de clientes por questões de confidencialidade contratual.
Em teleconferência na quinta-feira, Sérgio Rial, que ficou no cargo de executivo dez dias, disse que a contabilidade incorreta acontece há mais de “três, quatro anos”. Segundo ele, as auditorias teriam tentado, ao longo do tempo, enquadrar essa questão e “estão fazendo isso, separando o que é [da conta] de fornecedor, o que é exatamente dívida bancária”.
A modalidade também conhecida pelo curioso nome de “forfait” — um jargão do turfe que antigamente era sinônimo de faltar a um compromisso — chamou a atenção do regulador do mercado, que tentou colocar ordem no que Rial chamou de “alguma liberalidade de interpretação”, pelas empresas e até pelas instituições financeiras “do que é dívida e o que é fornecedor”. Um velho problema do varejo brasileiro, disse, desde a década de 1990.
Um tema tão antigo e controvertido — e com um nome tão suspeito —deveria ter merecido mais atenção dos fiscais do balanço.