VALOR – 24/05/2022.
Por Álvaro Campos — De São Paulo.
O novo padrão contábil IFRS 9, que traz regras sobre a classificação de instrumentos financeiros, permite reclassificar provisões para perdas de crédito de maneira mais fácil. Isso pode gerar um ganho contábil imediato para a empresa detentora daquele crédito, e à medida que a recuperação se concretiza, esse ganho contábil se transforma em ganhos reais. Percebendo o filão que está surgindo, a NPL Brasil, que presta serviços para os donos de carteiras vencidas, começou a ofertar esse serviço para seus clientes.
Apesar de, para os bancos, o IFRS 9 só começar a valer em 2025, para empresas não financeiras as normas estão em vigor desde 2018. Entretanto, agora, com as discussões sobre o setor bancário avançando, a NPL Brasil percebeu que havia uma oportunidade. A nova norma facilita a reversão da provisão durante a jornada da cobrança e não é mais necessário esperar até a recuperação final do crédito, como acontecia antes.
O primeiro cliente da NPL Brasil foi conquistado recentemente: uma companhia de capital aberto do setor de óleo e gás, cujo nome não é revelado. Para o CEO da consultoria, Christian Ramos, os avanços regulatórios e tecnológicos dos últimos anos é que tornaram esse novo serviço possível. Até poucos anos atrás, era muito comum um empresário ir à falência em um Estado, deixando para trás uma série de dívidas, e logo na sequência começar um novo negócio em outro Estado. Como os cartórios e outros registros regionais não eram integrados, era difícil para o credor rastrear esse empresário e bloquear bens dele em outros Estados. Agora, a integração começa a ocorrer, e a tecnologia torna o rastreamento mais fácil.
“Com o uso de tecnologia e inteligência de dados, nós conseguimos encontrar bens desse devedor e provar, juridicamente, que aquele crédito que estava contabilizado como zero, inteiramente provisionado, na verdade tem valor, que é possível uma recuperação”, diz Ramos. Os detalhes ainda estão sendo finalizados em parceria com escritórios de advogacia e as auditorias, mas a lógica é que, uma vez encontrado o bem e incluído no processo, ou seja, quando há um deferimento judicial de penhora, por exemplo, a provisão já pode ser reclassificada no balanço.
Ao analisar a carteira de devedores de uma empresa, primeiro a NPL usa algoritmos para avaliar centenas ou mesmo milhares de casos. Depois, seus robôs consultam inúmeras bases de dados, lendo documentos e procurando informações como o número de uma matrícula de imóvel, por exemplo. Quando algo é encontrado, um analista pode ser acionado para verificar aquela informação de forma mais crítica. “Estamos, de certa forma, originando novos ativos, gerando valor para a economia como um todo, porque eram NPLs [sigla para inadimplência] que estavam empoeirados nos balanços das empresas, com o valor sendo corroído”, diz.
Apesar de a NPL Brasil estar começando a oferecer o serviço agora, com o gancho do IFRS 9, a área de investigação patrimonial, ou forense, já existe há muito tempo. A diferença é que tradicionalmente não é voltada a ajudar a reverter provisões no balanço, mas utilizada por empresas contra grandes devedores em processos ajuizados. A Leme Inteligência Forense atua nesse segmento e diz que, nos últimos dois anos, ajudou a encontrar mais de R$ 8 bilhões em ativos “escondidos”. “Somos uma ‘legaltech’ que desenvolveu uma metodologia especial de identificação e recuperação de ativos. Entregamos para nosso cliente informações estruturadas sobre o grupo econômico em questão, inclusive abordando aspectos como blindagem patrimonial”, diz o CEO, Valdo Silveira.
A área ganhou corpo há cinco anos e o executivo afirma que, com o avanço da tecnologia, uma análise que levava 40 dias hoje pode ser feita em 15. A companhia desenvolveu uma ferramenta que usa big data e inteligência artificial para analisar grandes quantidades de informações de mais de 65 bases de dados. “Em 90% das vezes, a realidade de um devedor não é óbvia. Se uma dívida já está ajuizada, o patrimônio muito provavelmente não vai mais estar na primeira camada, no sócio majoritário da empresa. Ainda assim, conseguimos identificar algum patrimônio em 70%, 80% dos casos”, conta.
Assim como a NPL Brasil, a Leme também só consulta bases de dados públicas e não tem nenhum acesso a informações bancárias, por exemplo, que estão protegidas por sigilo, e respeita a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Obviamente, não tem nenhum poder de polícia nas investigações. “Muitas vezes fazemos visitas in loco, mas como se fôssemos clientes normais de uma empresa, por exemplo”, conta Silveira. Mergulhar nas redes sociais do devedor, por outro lado, pode ser fonte importante de informações. O executivo conta o caso de um cidadão que sempre fazia check-in no Instagran na mesma marina. Ao visitar o local, a Leme acabou descobrindo que ele era dono de uma embarcação.
A empresa já descobriu também patrimônios ocultos em ativos menos óbvios, como uma cadeira cativa em um estádio de futebol, ou mesmo cavalos. Nesse último caso, o devedor tinha em seu nome apenas uma fazenda, mas o valor do plantel era dez vezes superior ao preço da propriedade. “As mídias sociais nos ajudam muito, até porque hoje em dia existe a questão de querer ostentar”.
Rodrigo Bauce, sócio-diretor de financial risk management da KPMG no Brasil, lembra que o objetivo da contabilidade é trazer a realidade econômica para dentro do balanço da empresa e, nesse sentido, tem suas reservas sobre usar o gancho do IFRS 9 para vender a possibilidade de ganhos contábeis para as empresas. Ele também aponta que é preciso analisar com cuidado a questão do “timing” dessa reclassificação.
O especialista aponta que o CPC 48 – que trouxe diversas partes do IFRS 9 para o Brasil -, ao definir o que caracteriza um aumento significativo no risco de crédito de um ativo financeiro, diz que em cada data do balanço a entidade deve avaliar se o risco cresceu desde o reconhecimento inicial. Para isso, deve considerar “informações razoáveis e sustentáveis, disponíveis sem custo ou esforço excessivos”. “Se isso vale para reconhecer um aumento no risco de crédito, a recíproca também é verdadeira, ou seja, quando esse risco reduz”, diz.
Já o CPC 23, que trata de erros, retificações e mudanças de expectativas, aponta que a entidade deve alterar uma política contábil apenas se a mudança “resultar em informação confiável e mais relevante nas demonstrações contábeis sobre os efeitos das transações, outros eventos ou condições acerca da posição patrimonial e financeira, do desempenho ou dos fluxos de caixa da entidade”. Leonardo Meneses, vice-presidente financeiro da NPL, afirma que seu serviço se encaixa nessa definição, ou seja, ao contratar a consultoria, a empresa está mudando a forma como administra suas perdas. Até por isso, essa revisão do balanço só pode ser feita uma única vez.
“É uma mudança no padrão de cobrança da companhia e, além de encontrar os ativos do devedor e ajudar a colocá-los no processo, nós depois fazemos todo o acompanhamento até que ele seja monetizado”, explica. Ele aponta que uma análise da PwC quando o IFRS 9 foi adotado, em 2018, já apontava que mais ativos teriam de ser mensurados ao valor justo. “Esse estudo já indicava que as empresas poderiam precisar de novos sistemas e processos para coletar os dados necessários. É isso que fazemos, usamos tecnologia para encontrar ativos, depois trazemos a valor presente e estimamos a probabilidade de recuperação, calculando assim o valor justo.”