Por Edison Fernandes
https://valor.globo.com/legislacao – São Paulo – 10/08/2020.
(Parte 1)
O direito contábil é peça chave para entender a incidência da CBS proposta pelo governo
O projeto de lei que cria a Contribuição sobre Operações de Bens e Serviços (CBS), unificando a Contribuição para o PIS e a Cofins, reavivou a discussão sobre o conceito de receita. Especialmente com relação ao conceito que deve ser utilizado para aplicação da legislação tributária.
De pronto, lembro do voto da ministra Rosa Weber, no Recurso Extraordinário n° 606.107, do qual destaco este célebre trecho:
“A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário (…). Quanto ao conteúdo específico do conceito constitucional, a receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições, na esteira da clássica definição que Aliomar Baleeiro cunhou acerca do conceito de receita pública” (grifos meus).
Proponho, a seguir, que essa posição do Supremo Tribunal Federal seja analisada por partes. Inicialmente, a Ministra Rosa Weber, ao que parece, teria afastado o “conceito contábil” de receita, tema que deixarei para o fim, em decorrência da lógica escolhida para este artigo (peço desculpas antecipadas a você, leitor, pois, pela extensão dos comentários, este post terá duas partes).
Existe um “conceito constitucional” de receita: o voto condutor do acórdão do citado recurso extraordinário segue o entendimento, dentre outros, do professor Humberto Ávila, que sustenta que a Constituição Federal emprega termos que conotam “conceitos”. Particularmente, eu me identifico com essa posição. Portanto, tratemos do “conceito constitucional” de receita.
“Conceito constitucional” de receita decorre do conceito de receita pública expresso por Aliomar Baleeiro: o diálogo de fontes (multidisciplinaridade ou sincretismo jurídico) adotado pelo STF nesse caso deve ser elogiado. Afinal, para concluir pelo “conceito tributário” de receita, expresso no direito constitucional, foi utilizado por analogia o “conceito financeiro” de receita. Conquanto defenda essa abordagem multidisciplinar para interpretação e aplicação da legislação tributária, a mim me parece que seria mais apropriado tomar por analogia o “conceito de receita” do direito comercial. Isso porque a incidência de tributo sobre a “receita de empresas” (artigo 195, I, “b” da Constituição Federal) está mais próxima do direito comercial do que do direito financeiro.
Além disso, a referência expressa ao conceito de receita pública pode causar dúvidas, tendo em vista que, de acordo com a Lei n° 4.320, de 1964 (Normas Gerais de Direito Financeiro), a receita pública é reconhecida pelo regime de caixa (artigo 35, I), e, conforme dispõe a Lei n° 6.404, de 1976 (Lei das Sociedades por Ações), a receita das empresas é reconhecida pelo regime de competência (artigo 187, § 1°, “a”). Como compatibilizar essa contradição? Talvez, a utilização da expressão “ingresso financeiro” no conceito de receita exarado no voto da Ministra Rosa Weber dê uma pista, mas voltarei a esse ponto.
“Ingresso (financeiro) que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo”: em outras palavras, “elemento novo e positivo” que “integra no patrimônio” da empresa significa que a receita provoca um aumento no patrimônio da empresa. De maneira isolada, a receita gera aumento no patrimônio da pessoa jurídica, conquanto isso não signifique lucro, pois é necessário avaliar os custos e as despesas dessa mesma pessoa jurídica. Nesse sentido, é o entendimento de diversos tributaristas renomados, dos quais destaco Edmar Oliveira Andrade Filho e José Antonio Minatel, que, inclusive, foi referenciado no voto da Ministra Rosa Weber. Em conclusão, a receita é um aumento no patrimônio da empresa.
“Ingresso (financeiro) que se integra no patrimônio, sem reservas ou condições”: Acontece que nem todo aumento do patrimônio da empresa constitui receita, pois é necessário que esse aumento seja sem reservas ou condições. Sobre isso, convém resgatar o conceito de receita pública de Aliomar Baleeiro, norte do “conceito constitucional” de receita, do qual reproduzo apenas o seguinte trecho: “sem quaisquer reservas, condições ou correspondências no passivo”.
O fato de a receita não obedecer a reservas ou condições está relacionado diretamente a correspondências no passivo porque passivo é, grosso modo, dívida, portanto, será devolvido (liquidado). Nesse enquadramento cabe também o capital social, que se trata de uma espécie de dívida, mas de caráter especial, pois, sendo com o sócio, não será necessária e imperiosamente devolvido (restituído). Então, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, o “conceito de receita” para fins tributário é o aumento do patrimônio líquido que não tenha correspondência no passivo ou seja decorrente de modificação no capital social.
Mas não é só. Outros aspectos serão abordados no post seguinte:
(Parte 2) – Os conceitos ou o conceito de receita?
https://valor.globo.com/legislacao – São Paulo – 11/08/2020.
Há três aspectos a serem considerados pelo direito contábil à expressão “ingresso financeiro”.
Ainda sobre o conceito de receita que deve ser utilizado para aplicação da legislação tributária – discussão ressuscitada em razão do projeto de lei que cria a Contribuição sobre Operações de Bens e Serviços (CBS) –, além do já abordado na Parte 1 deste post, há três aspectos a serem considerados pelo direito contábil à expressão “ingresso financeiro”.
“Ingresso financeiro”: Este é o elemento do “conceito constitucional” de receita mais difícil de interpretar. Como foi mencionado, no direito financeiro – referência para o voto da ministra Rosa Weber no Recurso Extraordinário n° 606.107 – a receita pública é reconhecida pelo regime de caixa, vale dizer, ingresso financeiro seria, então, a liquidação da receita como ingresso de caixa. Essa é uma solução possível, interessante e favorável à pessoa jurídica contribuinte: se a Contribuição ao PIS e a Cofins, e posteriormente, se aprovada, a CBS, incidem na liquidação em caixa, estaria resolvida a questão da não incidência dessas contribuições sobre os valores de clientes inadimplentes – pleito dos contribuintes que foi negado pelo mesmo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que a lei tributária não prevê a exclusão da inadimplência da receita bruta.
Além disso, é lícito, da mesma forma, entender que o ingresso financeiro pode ser presente, quando do ingresso do caixa, ou referente a evento passado. Explico: tenham-se em mente que a receita caracteriza-se pelo ingresso do caixa e (partícula aditiva) ingresso sem reservas, condições ou correspondência no passivo; se acontecer de o ingresso de caixa ocorrer num primeiro momento com correspondência no passivo, mas, em momento posterior, esse passivo deixar de existir, portanto, eliminando essa correspondência, aquele ingresso de caixa original passaria a ser sem reservas ou condições?
Essa é exatamente a situação do perdão de dívida – essa situação foi o objeto de análise de José Antonio Minatel para afirmar “o equívoco da tentativa generalizada de tomar o registro contábil como o elemento definidor da natureza dos eventos registrados”, referido expressamente no voto da relatora do RE 606.107.
Finalmente, para compatibilizar a expressão “ingresso financeiro” com o direito comercial, na minha opinião, como escrito anteriormente, mais adequado para servir ao sincretismo jurídico para conceituar receita, a liquidação no caixa será necessariamente também futura. Por exemplo: ocorrida uma venda a prazo hoje, o seu produto já será considerado receita para efeito da incidência das mencionadas contribuições sociais, ainda que o efetivo ingresso no caixa se realize em momento posterior, quando cumprido o prazo do pagamento. Com isso, a receita seria reconhecida pelo regime de competência, como determina o direito contábil.
“Conceito juscontábil de receita”: Ao sustentar que a Constituição Federal emprega termos que conotam conceitos, Humberto Ávila explica que os termos constitucionais têm significado ou contextuais dentro da Constituição, ou já consolidados antes do advento da nova ordem constitucional. Da minha parte, concordo totalmente. E isso acontece também com relação ao conceito de receita, cujo significado consolidou-se antes da promulgação da Carta de 1988 (e mesmo antes).
Note-se que o artigo 195, I da Constituição Federal escolhe como incidência das contribuições sociais das empresas a folha de salários, a receita e o lucro. Todos esses conceitos já eram conhecidos antes, muito antes, de 5 de outubro de 1988 e certamente seus significados influenciaram os parlamentares constituintes.
Porém, o mais interessante é comparar o “conceito constitucional” com o conceito juscontábil de receita, tal como está redigido no parágrafo 4.68 da Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro (conhecida como Pronunciamento Técnico no Comitê de Pronunciamentos Contábeis CPC 00), nestes termos: “Receitas são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio”. De maneira resumida, basicamente receita é o aumento do patrimônio da empresa que não decorre de ingresso dos seus sócios (!).
A questão que deixo no ar para debate, então, é: o direito contábil influencia ou determina a interpretação da legislação tributária?