Por Miguel Reale Júnior e Renato de Mello J. Silveira – Valor – 29/08/2014 às 05h00.
Regulação parece ser o tema da moda. Apercebendo-se de uma real impossibilidade de controle gerencial de muitos campos, o Estado, de modo geral, tem proposto uma política de governança delegada, visto como autorregulação. Muitas vezes, ao estabelecer regramentos básicos à regulação, verifica-se o que se entende por autorregulação regulada.
Isso tem se mostrado como uma verdadeira palavra de ordem, também no direito penal. Determinam-se regramentos básicos a muitas profissões, os quais devem ser seguidos pelas várias áreas do conhecimento, consolidando uma resposta penal pela não observância do dever de vigilância quanto a esses deveres. Criam-se, enfim, respostas por situações de simples omissão, onde o não fazer mostra-se cada vez mais como fato criminoso. Essa, por exemplo, é uma das situações de atribuição do crime de lavagem de dinheiro, já que tem-se que determinadas profissões mostram-se, hoje, obrigadas a comunicar determinadas ocorrências em seu dia a dia laboral que possam ser vistas como suspeitas de ocultação de dinheiro.
Essa tendência tem impactado de forma bastante significativa o campo criminal. Mais do que isso, tem também deitado reflexos na própria advocacia. Desde alguns anos, mundo afora, tem-se visto muitas denúncias de atuações de advogados como incursos em lavagens de dinheiro. O recebimento de honorários maculados tem sido questionado em muitos países. Logo essa tendência também passou a ser vista no Brasil. Felizmente, por aqui, em termos de advocacia contenciosa, esse entendimento não tem prosperado. Diversamente, no entanto, em termos de advocacia consultiva, encontram-se muitos ecos defendendo uma certa responsabilidade por parte do profissional. Afirma-se, mesmo, que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deveria firmar balizas, obrigando o profissional a denunciar a presença do que poderia se ter por operações suspeitas. Com isso não se pode concordar.
O dever de informar atribuído ao advogado consultor levaria igualmente à quebra do eixo do exercício da advocacia
Observe-se que a advocacia consultiva pode se mostrar tão importante como a advocacia contenciosa. Ignorar esse fato é equivoco preliminar. Boa parte do serviço profissional do direito encontra-se na área de avaliação e de consulta. Muitas vezes, o indicar rumos é tão importante como a defesa em si. E a defesa, sempre se deve pontuar, deve sempre ser respeitada. A falsa ideia de que regramentos normativos podem evitar investigações pode conduzir a tal ideia, mas ela, em si, parece falsa. Investigações podem sempre se dar, até mesmo em termos abusivos, e nesse sentido deve haver a denúncia ao arbítrio.
Além do fato de que moralmente não se pode admitir que o advogado, mesmo consultivo, venha a quebrar o sagrado dever para com a causa posta sob sua análise, é importante recordar a percepção de que existem inúmeras situações que, muito embora possam se afigurar, a princípio, como suspeitas, não implicam, necessariamente, em questão passível de denúncia. Note-se o seguinte caso: em um planejamento tributário qualquer, o advogado tem perante si um montante de dinheiro que pode ser encarado como oriundo de conduta de sonegação fiscal. Pois bem. Estaria ele obrigado a efetuar a denúncia de seu cliente? Recorde-se que, em termos penais, em relação à sonegação fiscal existe a possibilidade de extinção de punibilidade pelo pagamento do tributo. Isso implicaria dizer que o advogado consultivo, nesse caso, não estaria a colaborar previamente em uma operação de lavagem de dinheiro oriundo de sonegação, pois a sonegação, em si, pode não subsistir. Pretender-se uma responsabilidade criminal ao advogado nesses casos é tão pernicioso quanto a proposta do famigerado último projeto de Código Penal, que entendia como crime de sonegação fiscal o próprio planejamento tributário.
Tais atuações profissionais, condutas neutras que são, encontram-se em âmbito de uma adequação profissional, a qual deve ser tida como penalmente irrelevante. Embora possa se dizer que investigações e processos possam se dar por tais desenvolvimentos profissionais, é de se ver que o prejuízo a ser tido em conta com um engessamento da atuação advocatícia nesse sentido é pior do que qualquer outra coisa. Moral e tecnicamente tal concepção é impensável. Nesse confronto, há de se ter em conta que o dever de informar atribuído ao advogado consultor levaria igualmente à quebra do eixo do exercício da advocacia, qual seja a relação de confiança entre advogado e cliente. Em última análise, só restaria que, na sala de reuniões do advogado consultor, estivesse estampado o seguinte aviso: “Tudo que disser pode ser usado contra você.”
Que se utilizem as representações de classe, bem como a própria dogmática em si, para a defesa maior de algo que parece mais importante: o próprio direito em si. Ao lado disso, tenha-se em conta que o órgão de classe não teria, como pode parecer representar, autonomia para gerir funções que venham a se dar fora do âmbito jurídico. Nesse caso, o advogado não se portaria como advogado, e a OAB nada teria a dizer. Os doutos defensores das noções de denúncias por parte dos advogados devem ter isso em conta, pois, em momento próximo, também poder-se-ia sustentar que a advocacia contenciosa também deve ser regulada. Essa é uma realidade em alguns países, e, como já se mencionou alhures, talvez, com isso, se esteja indo longe demais. Com isso só perde a Justiça e o direito de defesa.
Miguel Reale Júnior e Renato de Mello Jorge Silveira são, respectivamente, professor titular da Faculdade de Direito da USP e sócio de Miguel Reale Júnior Advogados e professor titular da Faculdade de Direito da USP e sócio de Silveira e Salles Gomes Advogados
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