https://valor.globo.com/legislacao/noticia – 09/08/2022.
Por Alessandro Barreto Borges (*)
Tirante o cenário de pagamento integral do débito, nas demais hipóteses o risco de investigação, denúncia e eventual condenação na esfera criminal pode surgir.
No âmbito das autuações lavradas pelo Fisco federal, a aplicação da afamada e temerária multa qualificada no percentual de 150% do valor do tributo exigido ou compensação não homologada sempre causou grandes preocupações aos contribuintes, não só por seu danoso efeito financeiro, mas principalmente pela possível repercussão criminal que pode acometer os dirigentes e sócios das empresas autuadas, inclusive responsáveis solidários, ao final do contencioso administrativo, em caso de sua manutenção.
Por isso é que, além da óbvia defesa relativa à improcedência dos tributos exigidos, sempre há um grande esforço e demanda pelos autuados de que pelo menos obtenha-se a descaracterização da qualificação, de forma a exigência tributária ficar adstrita apenas a seus efeitos patrimoniais, com a exclusão de todo e qualquer viés que possa ser objeto de análise pelo direito penal.
Tirante o cenário de pagamento integral do débito, nas demais hipóteses o risco de condenação na esfera criminal pode surgir.
É notório aos que militam no direito tributário, a aplicação cada vez mais indiscriminada e descontextualizada dessa penalidade de exceção nos lançamentos tributários exarados pela Receita Federal. Como consequência desse exagero, sua reversão no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem prevalecido de forma cada vez mais recorrente, face a corriqueira ausência de comprovação pelos agentes estatais do dolo, fraude ou simulação legalmente exigidos para sua cominação, posto limitarem suas acusações a meras reproduções de artigos de lei sem efetiva vinculação destes aos fatos do caso concreto.
Essa desconstrução da multa qualificada tem ainda sido mais potencializada pelo fim do retrógrado voto de qualidade, recentemente referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como denotam julgados atuais relativos a casos de ágio pela Câmara Superior, podendo citar-se como exemplo o Acórdão nº 9101-005.973, oriundo de sessão realizada em fevereiro deste ano.
Contudo, um ponto pouco explorado e veiculado sobre o tema é que mesmo com a derrocada das multas qualificadas no âmbito do Carf, tal fato não impede que processos de representação fiscal para fins penais constituídos no momento da lavratura dos autos de infração sejam encaminhados pela Receita Federal ao Ministério Público Federal para apuração de ato delitivo (crime tributário), que por sua vez pode solicitar a abertura de inquéritos ou até mesmo propor denúncias por crimes contra a ordem tributária, ainda que o dolo do fato investigado tenha sido desacreditado por órgão de julgamento dotado de profunda tecnicidade para tal avaliação.
A visão da instituição estatal para justificar essa reanálise é de que a verificação e investigação por ela conduzida é autônoma e independente, não ficando adstrita ou subrogada a valoração de fatos e provas feita por órgãos de julgamento administrativo como o Carf.
Essa compreensão há anos é endossada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob o entendimento de que o artigo 83 da Lei nº 9.430/1.996 impõe, necessariamente, o encaminhamento da representação fiscal ao Ministério Público, para os fins penais, independentemente do afastamento da multa qualificada na via administrativa. Nesse sentido, pode-se citar o REsp 1.569.429/SP e 1.368.252 (2ª Turma), o HC 49.470/PB (6ª Turma), dentre outros julgados no âmbito desse tribunal superior.
Diante dessa realidade, muitos contribuintes são surpreendidos com intimações policiais feitas pela Superintendência da Polícia Federal para prestar esclarecimentos acerca de fatos relacionados a infrações, que apesar de mantidas no contencioso administrativo tiveram a desqualificação da multa de ofício.
Em algumas situações, a existência do débito principal permanece viva e em debate no Poder Judiciário por meio de ações anulatórias, embargos à execução e até mesmo mandados de segurança. Já em outras há a opção pelos contribuintes de pagamento integral do débito, adesão a parcelamentos (ordinários ou especiais) ou a propostas de transação tributária, em face dos descontos proporcionados e incertezas quanto ao prognóstico de êxito da causa. Ou seja, um verdadeiro julgamento de conveniência e oportunidade por parte dos administrados.
Tirante o cenário de pagamento integral do débito, que expressamente é causa de extinção da punibilidade nos termos do artigo 34 da Lei nº 9.249/1.995 ou do artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 10.684/2003, nas demais hipóteses o risco de investigação, denúncia e eventual condenação na esfera criminal pode surgir, caso o Ministério Público Federal resolva apurar e investigar o fato objeto de representação fiscal para fins penais encaminhada pelo Fisco federal.
Essa nova investigação não se subsume as provas e alegações da acusação administrativa, o que pode em alguns casos gerar a completa rediscussão do dolo, inclusive com necessidade da obtenção e discussão de novos elementos de prova.
No fim das contas, o que se constata é a capciosa e injusta perpetuação de um litígio na linha do tempo, em desfavor dos contribuintes. Como justificar a um administrador ou a investidores que o caráter doloso de um ato, já rechaçado de forma definitiva no contencioso administrativo, possa sofrer tentativa de restabelecimento, à luz de investigação ou acusação agora intentada pelo Ministério Público Federal.
Em que se pese a posição atual do STJ sobre essa possibilidade, a mesma deve ser combatida para no mínimo haver sua relativização, eis que onde existir a mesma razão deve prevalecer o mesmo direito, não se podendo conceber reanálises de fatos já julgados, por autoridade penal com menor especialidade tributária.
(*) Alessandro Barreto Borges é sócio da área tributária da Benício Advogados
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