https://valor.globo.com/legislacao – 28/06/2022.
Por Jessica P. Messias e Victória de A. Mendonça.
Mesmo na ausência de uma filial formal, não se descarta que o home office possa representar local físico.
A digitalização da economia vem há anos colocando em xeque o conceito de “estabelecimento prestador” para fins de recolhimento do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (“ISS”). Com a pandemia do covid-19, inúmeras empresas passaram a desempenhar suas atividades de forma remota – muitas, inclusive, exclusivamente -, o que acelerou o processo de atomização da prestação de serviços, tornando ainda mais obsoleto o critério espacial do ISS.
O ISS é um imposto municipal com competência prevista no art. 156, III da Constituição Federal, e é regulamentado, em nível nacional, pela Lei Complementar n. 116/2003 (“LC n. 116/03”), responsável por desenhar os elementos da sua regra matriz, como materialidade, local do fato imponível, base de cálculo e momento de incidência.
Mesmo na ausência de uma filial formal, não se descarta que o home office possa representar local físico.
No que tange ao critério espacial, i.e., onde ocorre o fato gerador (o que vai definir para qual município o imposto é devido), como regra geral o ISS será devido ao município no qual o contribuinte possua o estabelecimento onde se desenvolve a prestação do serviço. Portanto, em regra, o ISS não é devido ao município em que se encontra o cliente, tampouco a qualquer outra localidade formalmente definida pelas partes, mas ao município no qual esteja localizado o conjunto de ativos e pessoas em que a atividade é desempenhada.
Para fins de determinação do local onde a atividade é desenvolvida, são dois os requisitos: (i) caracterização de uma unidade econômica ou profissional, onde seja realizada a atividade que se considera o núcleo da prestação de serviço – “atividade-fim” – e (ii) o local físico de prestação do serviço.
É aqui, num dos aspectos do critério espacial do ISS, que reside o dilema da nova realidade do home office: seria possível a caracterização de um estabelecimento prestador na hipótese de uma unidade econômica ou profissional, que desempenhe atividade-fim da empresa, sem a existência de uma base fixa? E se sim, como resolver o problema da identificação do sujeito ativo (município que tem direito ao ISS), em uma plataforma atomizada?
O assunto é novo e pouco debatido nos órgãos brasileiros, mas a dúvida é crescente entre as empresas. Nada obstante, é possível extrair do art. 4º da LC n. 116/03 que o conceito de estabelecimento prestador pretende alcançar de forma ampla situações nas quais o prestador mantém unidade econômica ou profissional, independentemente da nomenclatura adotada, prezando pela substância sobre a forma. Assim, mesmo na ausência de uma filial formalmente constituída, não se descarta que o home office possa representar local físico com força de atração da competência tributária municipal.
Nesse sentido, podemos ver algumas mudanças recentes na legislação tributária que apontam para a flexibilização da necessidade de filial formalmente constituída, o que permitiria a tributação por um município, mesmo sem abertura de um estabelecimento.
Um exemplo são as regras impostas aos coworkings em alguns municípios, que atribuem a esses espaços de locação a responsabilidade solidária pelo recolhimento do ISS, caso as empresas que utilizam suas estruturas não tenham cadastro municipal, como São Paulo nas Leis nº 13.701/03 e nº 16.898/18. Isso é um indicador do reconhecimento, pelas autoridades, de que uma pessoa ou um grupo de pessoas possa ser um estabelecimento prestador para fins fiscais, não importando se de maneira formalizada.
Isso não significa, ou ainda não significa, que os municípios poderão cobrar o ISS conforme a residência de cada colaborador de uma empresa em seu território. De fato, parece impraticável o controle pela empresa, a cada momento, do local de prestação do serviço por cada um de seus colaboradores, ou o faturamento dos serviços pela empresa por inúmeros municípios diversos.
Utilizando-se do direito comparado, o estabelecimento prestador aproxima-se do conceito de “estabelecimento permanente”, explorado pelas Convenções para Evitar a Dupla Tributação e Evasão Fiscal da OCDE. Em âmbito internacional, um local onde a atividade no formato home office é exercida configura estabelecimento permanente da empresa caso esteja colocado à disposição da empresa. Portanto, caso o entreposto de home office seja considerado como à disposição da empresa, nele poderia se configurar um estabelecimento prestador, atraindo a competência tributária.
Provocações feitas, não nos parece que a saída dos municípios será pela cobrança do ISS conforme a residência de cada colaborador em home office, pela simples impossibilidade procedimental disso, e ausência de base legal que permita (atualmente) esta cobrança. As novas possibilidades de contratação e práticas empresariais, contudo, evidenciam o anacronismo do conceito formal de estabelecimento, que requer atualização.
A crescente complexidade na definição do local do prestador parece ser mais um elemento que pende para uma (talvez iminente) mudança no critério de cobrança e destinação do tributo, favorecendo a tributação no local do consumo/consumidor. É um dos pontos propostos nas reformas e não isento de complexidades, mas coerente com uma solução para problemas mais antigos do modelo tributário do ISS (guerra fiscal entre municípios e pulverização da legislação), e em linha com as recentes discussões internacionais quanto ao local de geração de valor para fins de tributação sobre softwares, marcas, plataformas e redes sociais.
Jessica Passarini Messias e Victória de Athayde Mendonça são advogadas do Cascione Pulino Boulos Advogados.
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