https://valor.globo.com/legislacao – 18/04/2022.
Por Caio Cesar Nader Quintella (*)
Toda a dinâmica obrigacional entre contribuinte e Fisco ocorre dentro de um cenário de eterna tensão.
Como amplamente noticiado, o Supremo Tribunal Federal (STF), recentemente, encerrou o julgamento da ADI nº 2.446, proposta pela CNC, questionando o parágrafo único do art. 116 do CTN, inserido pela Lei Complementar nº 104/2001, que permitiria às autoridades tributárias desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Defendeu-se na ação – dentre diversos argumentos – que tal, então novo, dispositivo daria poderes ao Fisco para desfazer, exigir a diferença de tributos e multar, pesadamente, o contribuinte que apenas procedeu a um simples planejamento tributário, visando ao menor impacto fiscal possível em sua atividade e negócios, mesmo sem ter cometido a qualquer ilegalidade, como fraude, simulação ou sonegação.
A Suprema Corte julgou constitucional tal dispositivo, porém, aparentemente, dentro de uma visão e interpretação que esta norma não teria o condão de coibir ou limitar o planejamento tributário lícito (conhecido por elisão), mas apenas incrementar o arsenal legislativo da Fazenda Pública contra a economia de tributos por vias ilegítimas (conhecida por evasão). A confirmação de tal posição demandará uma análise muito minuciosa e profunda dos termos prevalentes no acórdão publicado desse julgamento dos Excelsos Pretores, suas premissas e conclusões eficazes.
Ainda dentro da temática do planejamento tributário, vamos nos distanciar um pouco do Poder Judiciário e voltar o olhar à esfera do contencioso administrativo federal: o Carf, que recentemente também proferiu novos julgados sobre a matéria, esclarecendo os limites da adoção de estruturas de negócio otimizadas em relação à oneração fiscal, as prerrogativas do Fisco nessas hipóteses e o delineamento daquilo que separa o legal do ilegal e, também, do criminoso.
Toda a dinâmica obrigacional entre contribuinte e Fisco ocorre dentro de um cenário de eterna tensão.
Nos últimos meses foram proferidos pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais os Acórdão nº 9101-005.973, de 11/03/2022, Acórdão nº 9101-005.876, de 25/01/2022 e Acórdão nº 9101-005.761, de 26/10/2021. Nos três julgados foi diretamente tratada a aplicação da multa qualificada, de 150%, em operações societárias de aquisição de investimentos por meio de participação em outras companhias, com ágio, em que a Receita Federal do Brasil entendeu que as estruturas jurídicas criadas para viabilizar tais transações representavam verdadeiras fraudes, simulações e sonegação diante do resultado tributário percebido, o que permitiria aplicar a pena duplicada e proceder a Representações Fiscais para Fins Penais.
Naqueles julgamentos, fixou-se que a simples constatação da perpetração pelos contribuintes de planejamento tributário não basta para fundamentar a aplicação de tamanha sanção e produzir consequências penais (ainda que certo que a manobra teria sido abusiva e motivada apenas pela redução da carga tributária). Na mesma esteira, complementando e aprofundando tal posição, estabeleceu-se que a autoridade fiscal deve respeitar, rigorosamente, os conceitos jurídicos dos ilícitos invocados, regulados pela Lei Civil- como a fraude, a simulação, o dolo e o recente abuso de direito – estando sua atuação restrita às remissões do Código Tributário Nacional a tais figuras, não podendo haver ampliações, distorções, inovações e, principalmente, o contrabando de conceitos estrangeiros, como o da ausência de propósito negocial. Igualmente, determinou-se que a mera divergência jurídica, interpretativa, entre Fisco e Contribuintes sobre a licitude de uma determinada manobra não configura dolo (ou qualquer outro ilícito), não podendo se rotular de delinquente a adoção de tal conduta controversa.
Ora, é certo que todo tributo devido pelos contribuintes ao Estado decorre de obrigação prevista em Leis. E todas as normas, inseridas nessa complexa estrutura legislativa, estão sujeitas (e dependem, para sua aplicação e observância) a interpretação, permitindo os mais diversos entendimentos sobre seus elementos, alcance e efeitos.
E toda a dinâmica obrigacional entre contribuinte e Fisco ocorre dentro de um cenário de eterna tensão na determinação daquilo que pertence definitivamente ao privado e daquilo que deve ser destinado ao público, erigido pelas forças de pretensões patrimoniais manifestamente opostas, revelando-se uma verdadeira trincheira onde se peleja pelo efetivo alcance das normas postas e a grandeza do poder de tributar.
Natural que, diante da ausência de proibição expressa e da plausibilidade de licitude, os administradores e os próprios Contribuintes adotarão a conduta que implica em menor tributação – é o seu dever com a gestão das entidades, com seus investidores e, porque não, consigo mesmo.
Sendo sociologicamente intrínseco, natural e esperado o conflito entre particulares e Fazenda Pública pela medida de penetração permitida no patrimônio privado, a desconsideração de um planejamento tributário e a sua classificação como transgressor deve ser hipótese restrita e mínima, excepcional e reservada àqueles engendramentos que, acima de qualquer dúvida ou plausibilidade de boa-fé, mediante a produção de prova cabal, envolveram posturas antijurídicas altamente lesivas e verdadeiramente delituosas. Não pode ser tolerado e deve ser rechaçado, a todo custo, o fenômeno da criminalização do planejamento tributário e das correspondentes divergências interpretativas entre Contribuintes e Fisco.
Por fim, espera-se ver prestigiadas e confirmadas tais posições do Carf pelo Poder Judiciário.
(*) Caio Cesar Nader Quintella é ex-vice-presidente da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro Titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais, advogado tributarista em São Paulo, professor e mestre em Direito pela PUC/SP
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