https://valor.globo.com/financas – 15/03/2022.
Por Álvaro Campos — De São Paulo.
Ainda que não haja alta forte das provisões, elas devem se tornar mais voláteis.
Os bancos brasileiros se preparam para adotar o padrão IFRS 9, que vai impor a maior mudança contábil sobre o setor em mais de 20 anos. O maior impacto se dará na forma como as provisões para devedores duvidosos (PDD) – que refletem a expectativa de perdas no crédito – são calculadas.
Sob a nova regra, as instituições financeiras terão de conhecer e gerir melhor seus ativos problemáticos e fazer provisões com base no conceito de perda esperada. Ou seja, terão de constituir provisões levando em conta a expectativa de inadimplência, o que, em momentos de piora do cenário, vai além do agravamento dos ratings de clientes já em curso.
Os grandes bancos brasileiros já adotam voluntariamente para as novas provisões esse conceito, que é mais conservador e mais alinhado com as práticas internacionais. Agora, terá de haver uma adaptação de todo o estoque da carteira de crédito.
O Banco Central (BC) decidiu que as mudanças valem a partir de 2025. Inicialmente, a previsão era que a medida entraria em vigor neste ano, mas o regulador estendeu os prazos por causa do tratamento tributário das provisões. Apesar do adiamento, participantes do setor apontam que o trabalho é muito grande e, se as instituições financeiras – principalmente as de médio porte – não começarem a se preparar já, pode haver problemas lá na frente. Além disso, os bancos têm até junho deste ano para enviar à autoridade monetária um plano de como pretendem se adequar às novas regras.
O IFRS é um conjunto de normas emitidas pelo Conselho Internacional de Normas Contábeis (Iasb) e é adotado em boa parte do mundo. No Brasil, os bancos divulgam seus balanços ao BC no padrão BR GAAP, que continuará sendo usado.
Ainda que não haja alta forte das provisões, elas devem se tornar mais voláteis com uso da perda esperada.
O diretor de economia, regulação prudencial e riscos da Febraban, Rubens Sardenberg, diz que muitas regras do IFRS 9 ainda vão depender de normatizações futuras. A nova norma altera muitas coisas, revogando a Resolução 2.682 do BC, de 1999, que classifica os riscos das operações numa tabela que vai de “AA” até “H”, do menor para o maior. “O novo padrão começou após a crise de 2008, de tal modo que a constituição de provisões se compatibilize com a gestão de risco, que seja uma coisa mais dinâmica, menos estática e voltada para o passado”, afirma.
No fim do ano passado, o BC disse que pretendia alinhar a mudança para o IFRS 9 contábil a uma alteração nas regras tributárias, buscando assim um maior alinhamento entre os regimes contábil e fiscal. O fim do descasamento entre os regimes nas provisões de crédito é um pleito histórico do setor. A Febraban afirma que o volume de créditos tributários nos balanços dos cinco maiores bancos do país (Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa) soma R$ 282 bilhões, dos quais R$ 147 bilhões referem-se a operações inadimplentes.
Como não se espera que a reforma tributária avance no Congresso neste ano eleitoral, agora participantes do mercado pensam que o BC pode acabar patrocinando um projeto de lei menor, específico sobre a tributação das provisões. Procurado, o BC afirmou que o padrão contábil e a regras tributárias, a despeito de estarem bastante relacionadas, são coisas autônomas. Assim, a adoção do IFRS 9 ocorrerá independentemente de eventuais mudanças na regra tributária.
“Importante destacar que a adoção do IFRS 9 representa maior inter-relação entre a contabilidade e os modelos de negócio da instituição para gerenciamento de seus instrumentos financeiros. Assim, é vital que nas instituições haja uma maior aproximação das áreas de negócios com o pessoal da contabilidade”, afirma o BC.
No novo padrão, os créditos serão classificados em três estágios. No estágio 1, os ativos não problemáticos; no estágio 2, aqueles cujo risco tenha aumentado significativamente em relação ao apurado na alocação original ou que eram problemáticos e depois retrocederam para um risco menor; e no estágio 3 os ativos problemáticos mesmo. Os bancos classificados como S1, S2 e S3 – onde se enquadram os de grande e médio portes – serão obrigados a utilizar este modelo, enquanto as instituições financeiras S4 podem utilizar essa versão ou uma opção simplificada, e o grupo S5 só a simplificada.
Entre os pontos que o BC ainda precisa normatizar está a tabela mínima de provisões para créditos classificados no estágio 3. Alguns executivos dizem que é difícil entregar um plano de ação até junho sem ter essa informação. De qualquer forma, não se espera um aumento muito significativo no estoque de provisões, até porque a tabela adotada pela Resolução 2.682 já contempla uma “escadinha” que mostra quando há deterioração do crédito.
“A Resolução nº 2.682 já requer que as instituições financeiras reconheçam, mensalmente, provisão suficiente para fazer face às perdas prováveis na realização dos créditos, desde a data de sua concessão. Portanto, espera-se que no Brasil o volume total de provisões não seja muito diferente do existente. É esperado, contudo, um pequeno aumento no volume de provisão em decorrência da ampliação do escopo dos instrumentos financeiros sujeitos à regra de provisão. Atualmente, estão sujeitas ao provisionamento as operações de crédito, as operações de arrendamento mercantil e outras operações com característica de concessão de crédito, além das garantias financeiras prestadas. Pela nova regra, além desses instrumentos, as instituições devem constituir provisão para perda esperada para títulos e valores mobiliários e para compromissos de crédito”, diz o BC.
Segundo Edison Arisa, sócio da Pwc, os bancos terão de fazer, por exemplo, provisões para o limite do cheque especial concedido aos clientes, estipulando o volume que pode ser acessado e a probabilidade de inadimplência. “Mesmo que o cliente não esteja utilizando aquele limite, o banco disponibilizou e ele pode acessar a qualquer momento. Essa nova regra pode elevar um pouco o nível geral de provisões”, afirma.
Ainda que não haja grande aumento do total provisionado, esse valor deve se tornar mais volátil. “Com relação à volatilidade das provisões, espera-se que ela aumente. Porque se você utiliza obrigatoriamente cenários futuros [para constituir as provisões], as mudanças nos cenários refletem-se também nos volumes de provisões”, disse Uverlan Rodrigues Primo, consultor do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC, num evento em outubro.
Sardenberg, da Febraban, concorda. “A pandemia foi um exemplo disso. Nos grandes bancos, que já usam modelo de perda esperada, subiu muito a provisão, porque você tem que se preparar para um cenário”, observa.
De acordo com o BC, na etapa de estudos, os termos da norma foram amplamente discutidos com as entidades representativas das instituições financeiras e demais autorizadas, inclusive por meio de três consultas públicas e reuniões com os segmentos mais afetados. Para o regulador, o prazo de 2025 é “suficiente para que as instituições façam todas as adequações necessárias em suas rotinas e sistemas, de modo que tenhamos uma transição suave e segura para o novo marco regulatório”.
Para Everton Gonçalves, superintendente da assessoria econômica da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), o prazo é suficiente mesmo para os bancos de menor porte, mas ele não descarta que instituições de nicho possam ter dificuldades. “As regras também são divididas por tipo de carteira, então algum banco, dependendo do tipo de atuação, pode ser mais atingido que outros”, diz.
Gonçalves diz que a possibilidade de instituições do segmento S4 optarem pela versão completa no cálculo das provisões (e não pela simplificada) foi um pleito da ABBC, pois muitos bancos estrangeiros que atuam no país estão familiarizados com o padrão IFRS.
Douglas de Oliveira, responsável pela área de serviços financeiros da auditoria Mazars, lembra que os grandes bancos já têm colchões de provisões acima do mínimo regulatório, mas algumas instituições que trabalham mais perto desse limite podem ser obrigadas a fazer complementos mais significativos.
Oliveira explica que os grandes bancos já são obrigados a divulgar o resultado anual em IFRS desde 2016, em função do CPC 48. Entretanto, para os outros bancos a mudança vai exigir bastante trabalho. “Os bancos podem levar uns dois anos para se adaptar. Isso mexe bastante com a estrutura, é preciso fazer a lição de casa para entender todo o perfil da sua carteira, como se comportou no passado. E os bancos muitas vezes têm sistemas legados. Agora vão ter que colocar tudo em um repositório e trabalhar com novas informações”.
Outro ponto importante que o mercado espera o BC definir, e que deve vir na forma de um projeto de lei, é tornar dedutível do imposto de renda pelo menos o piso estabelecido para cada categoria de provisão no estágio 3. A definição desses patamares não é simples. Se o BC definir pisos pequenos, não resolve o problema da criação de créditos tributários. Se estabelecer pisos muito elevados, permitirá uma dedutibilidade maior, mas isso também exigiria provisões mais altas, que podem não ser tão necessárias e afetar os resultados dos bancos.