POR ESTADÃO – 19/02/2021.
Por Filipe Vergniano Magliarelli, Juliane Mendonça e Victor Campos Fanti*
No dia 18 de dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) concluiu o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (“RHC”) nº 163.334/SC, sob a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, de modo que fixou a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS[1] cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990”[2], também conhecido como crime de “apropriação indébita tributária”. No entendimento da maioria dos Ministros, ao deixar de recolher o valor do ICMS destacado em nota fiscal ou embutido no preço da mercadoria, o vendedor estaria se apropriando indevidamente de valor pertencente ao Estado e que estaria em seu poder a título meramente transitório.
O acórdão que fixou a emblemática tese foi finalmente publicado em 13 de novembro de 2020. Apesar de ser questionável considerar como criminoso o não recolhimento de tributo declarado, pela análise dos votos, pôde-se notar o cuidado dos Ministros em, ao menos, tentar separar o joio do trigo, para afastar o enquadramento de uma inadimplência fiscal pura e simples como crime.
Diante da possibilidade de interpretações equivocadas, os ministros ofereceram exemplos práticos que podem servir como importantes critérios a serem observados por Juízes para distinguirem as situações nas quais o não recolhimento de ICMS destacado ou cobrado pode ser considerado crime. Isto deve acontecer, basicamente, segundo o STF, quando estão presentes a contumácia e o dolo (intenção) de apropriação.
Assim, de acordo com os Ministros do STF, para a caracterização da apropriação indébita tributária, é necessário que sejam apuradas as circunstâncias objetivas do caso concreto, com base no que os Ministros chamaram de “modelo negocial do empresário”. São três os critérios afixados: (a) quando o modelo visa à lesão da concorrência, (b) quando o modelo visa ao enriquecimento ilícito e (c) quando o modelo visa a burlar o Fisco para dificultar a cobrança do ICMS declarado e não pago. Passamos a distingui-los a seguir.
No primeiro modelo (“a”), enquadra-se o empresário que vende os produtos abaixo do preço de custo, lesando a concorrência e causando desequilíbrio ao setor em que atua. Nesse caso, o empresário leva em consideração a existência dos valores não recolhidos como parte de sua receita, fazendo com que a venda de seus produtos abaixo do preço de custo não dependa da margem de lucro embutida no valor. Segundo o Ministro Roberto Barroso, “[a] prática produz, então, um efeito cascata, em que aqueles que deixam de recolher o imposto acabam por pressionar os concorrentes a seguir o mesmo caminho, e assim sucessivamente”.
O segundo modelo (“b”) diz respeito àquilo que os Ministros chamam de “contumácia”, que se caracteriza por uma conduta reiterada e sistemática[3] do empresário em dever ao Fisco por diversas vezes e, no caso específico do ICMS, por meses seguidos, sem qualquer tentativa de parcelamento ou regularização do débito. Muito tem se questionado a respeito da excessiva subjetividade desse critério, uma vez que, a depender do julgador, a contumácia pode ser tida por 3 meses quanto por 3 anos de dívida. Há precedentes no Superior Tribunal de Justiça e no próprio STF que consideraram como não contumaz o período não superior a sete meses de não recolhimento de ICMS.
De qualquer modo, a inadimplência habitual e reiterada de ICMS será reconhecida como prática do delito de apropriação indébita tributária, cabendo ao empresário comprovar que sua mora decorreu, por exemplo, de uma dificuldade financeira que tornasse inexigível outra conduta que não fosse deixar de recolher o valor do ICMS destacado ou cobrado para pagar despesas essenciais, como água, luz, fornecedores de matéria-prima e folha de pagamento.
Por último, o terceiro modelo (“c”) diz respeito à condição do empresário em burlar o Fisco mediante artifícios capazes de dificultar a cobrança do imposto devido, tais como a utilização de laranjas no quadro societário ou o encerramento irregular de suas atividades. Assim, autoriza o STF a dar início à persecução penal quando estiverem existentes esses requisitos, pois seriam capazes, segundo os Ministros, de demonstrar o dolo de apropriação.
Portanto, pode-se concluir que o STF acabou outorgando ao Judiciário eventual poder de pressionar, ainda que indiretamente, empresários e devedores contumazes a quitarem seus débitos fiscais (lembrando-se que o pagamento do tributo extingue a qualquer tempo o processo por crimes tributários, de acordo com o entendimento dos Tribunais Superiores), em uma indevida instrumentalização do Direito Penal para outros fins que não sejam os seus próprios.
Por outro lado, para não prejudicar pequenos empresários ou aqueles que enfrentam dificuldades financeiras em um país em constante crise econômica, o STF também buscou fixar balizas criminológicas e dogmáticas para o reconhecimento do crime de apropriação indébita tributária, isto é, a quem se visa a punir e por qual motivo se visa a punir.
É sempre questionável esse aparente ativismo judicial do STF em criar critérios normativos e a tomar decisões de política criminal, mas é forçoso reconhecer o esmero dos Ministros em darem alguma segurança jurídica à nova (e controversa) tese. Resta saber se os demais Tribunais seguirão a mesma orientação.
[1] Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços, de incidência estadual.
[2] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
II – Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
[3] Supremo Tribunal Federal, Recurso em Habeas Corpus nº 163.334, Ministro Relator Roberto Barroso, Data de publicação 13.11.20, pág. 33.
*Filipe Vergniano Magliarelli, advogado criminalista, sócio das áreas de Penal Empresarial e Compliance do escritório KLA Advogados, mestre em Direito Processual Penal pela USP
*Juliane Mendonça, advogada criminalista e pesquisadora, associada do escritório KLA Advogados na área Penal Empresarial, mestranda em Direito Penal Econômico pela FGV/SP
*Victor Campos Fanti, advogado criminalista, associado do escritório KLA Advogados na área de Direito Penal Empresarial, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)