valor.globo.com – 21/02/2020.
Por Scilio Faver.
Pela lei, o que se pune é a omissão do julgador quando, demonstrado o excesso pela parte prejudicada, não se determinar a liberação da quantia.
Aquilo que era temido pelos devedores em um processo judicial e que, por outro lado, baseia-se na efetividade do direito do credor, parece já ter se tornado um outro tormento também para os advogados e magistrados no processo. Isso porque algumas decisões têm sido proferidas indeferindo a realização dessa importante medida satisfativa de crédito utilizando-se da argumentação da recente lei de abuso de autoridade que tipificou penalmente a conduta de indisponibilizar os ativos financeiros quando informado o excesso pela parte prejudicada.
No entanto, o que se vê, com as devidas vênias, é um açodamento das decisões desse tipo, que, em alguns casos, indeferem a medida satisfativa, recorrendo-se (mais do que nunca, inclusive) a argumentação de necessidade de instauração do contraditório anterior a efetivação da medida para não ser tipificado no abuso de autoridade. Na prática, evidentemente, apenas faz a medida de eficaz se tornar a mais inútil forma de se cumprir decisões judiciais. O que torna a situação ainda mais antagônica pois a mesma autoridade judicial que condena a pagar determinada quantia acaba por não ver a sua decisão efetivada na prática. É o direito não sendo realizado efetivamente. E dá-lhe anos de processo.
Pela lei, o que se pune é a omissão do julgador quando, demonstrado o excesso pela parte, não se determinar a liberação da quantia
É certo, porém, que muitos dos motivos do indeferimento da medida de penhora on-line (mormente o que se declinou acima), vem como protesto a própria lei de abuso de autoridade. O fato é que a lei já passou a integrar a norma jurídica e merece ser corretamente interpretada para que não se condene aquilo que é princípio positivado do processo civil, qual seja, a satisfação da atividade jurisdicional (artigo 4º do CPC). E mais, não se condene aquele que precisa do Judiciário para garantir o seu direito e frisa-se, no Judiciário confia, por vezes, a sua própria vida.
Portanto, ao analisar o tipo penal da lei de abuso de autoridade que trata do tema da penhora on-line (artigo 36 da Lei nº 13.869, de 2019), é de fácil percepção, em interpretação literal ao texto, que para o magistrado incorrer no tipo, é necessário a conjugação de três requisitos cumulativos. Vejamos o que diz o artigo 36: “Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”. Assim, para o enquadramento no tipo, deverá ter ocorrido: (1) decretação de indisponibilidade de ativos financeiros (penhora on-line); (2) quantia que extrapole o valor estimado, e (o mais importante), (3) ante a demonstração, pela parte prejudicada, do excesso bloqueado, o juiz deixar de corrigir.
Ora, o que se percebe do dispositivo é que a sanção é tão somente para aqueles casos em que a parte, tempestivamente e de acordo com a regra processual, vem aos autos informar o excesso e ainda assim o juiz deixa de liberar o excesso incorrendo em culpa por omissão. Ressalta-se que a conjunção eleita para unir todos os requisitos caracterizados do tipo de abuso foi “e” e não “ou”. Portanto, não se pune o deferimento da medida sem o contraditório (até para que não perca a sua efetividade) e, igualmente, não se pune, de pronto, o excesso eventualmente bloqueado com a medida. Tais atos não são punidos isoladamente pelo texto legal.
O que se pune é a omissão do julgador quando, demonstrado o excesso pela parte prejudicada, não se determinar a liberação da quantia. Ou seja, o que o tipo prevê é tão somente aquilo que o próprio Código de Processo Civil já regula em seu artigo 854. No parágrafo terceiro do referido dispositivo se distribui o ônus à parte prejudicada da necessidade, no prazo de cinco dias a contar da intimação da indisponibilidade, informar que remanesce indisponibilidade excessiva de ativo financeiro. Uma vez feita a sua manifestação, o parágrafo quarto do dispositivo, devolve ao juiz, o poder de acolher a alegação e, por consequência, determinar o cancelamento do excesso, garantindo assim a objetividade da constrição. É justamente nesta fase que, verificada a omissão pelo magistrado, se enquadra o tipo penal.
Não parece sensato indeferir-se a medida por argumentos que não estão contidos no artigo da lei de abuso de autoridade, pelo fato dela existir. As vozes do protesto, justíssimas no mundo democrático inclusive, não podem se sobrepor à efetividade da tutela jurisdicional e prejudicar a satisfação de um direito (ainda mais quando reconhecido pela autoridade judicial). Não se pode admitir a inversão de papéis, isto é, todos os sujeitos do processo, possuem as suas responsabilidade e seus riscos e de nada prejudicará existir uma previsão legal/penal – como a que agora está no texto – se todos os sujeitos do processo agirem de conformidade com o que se impõe o processo civil.
A argumentação aqui lançada tem como objetivo não apenas fortalecer a efetividade da tutela jurisdicional para aqueles que necessitam como também amparar e assegurar aos dirigentes do processo aquilo que está delimitado como abuso de autoridade. Garantir efetividade a um direito reconhecido judicialmente jamais poderá ser condenado. Porém, a irresponsabilidade dos sujeitos do processo (seja por ação ou omissão), esta sim, tem que ser punida para se garantir a própria existência de um processo judicial.
Scilio Faver é advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur e Faver Advogados
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