valor.globo.com – 13/11/2019..
Por Lorreine Messias, Larissa Longo e Breno Vasconcelos.
O contencioso administrativo do Brasil, somente em nível federal, em 2018, foi de 16,4% do PIB.
O número de horas gastas para pagar tributos no Brasil, bastante superior à média mundial, é frequentemente usado para ilustrar os problemas do nosso sistema tributário e a necessidade de reformá-lo. Outro indicador, igualmente relevante e ainda pouco explorado no debate, é o valor do contencioso tributário do país comparativamente ao resto do mundo.
Esse dado permite inferir o grau de insegurança jurídica do país e, consequentemente, conclusões sobre a qualidade do sistema.
Para estimar o valor dos créditos tributários em discussão no Brasil, para os três níveis federativos, tanto em tribunais administrativos como judiciais, foi realizada uma ampla e inédita coleta de dados em bases estatísticas públicas, dentre elas, das Secretarias de Fazenda estaduais e municipais, Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Tesouro Nacional.
No plano internacional, utilizou-se como referência o relatório Tax Administration 2015, da OCDE, cujas informações disponíveis para uma amostra de países referiam-se ao ano de 2013. Os países foram organizados em dois grupos: membros da OCDE (Canadá, Chile, Coreia do Sul, Estados Unidos, Itália, Hungria, México, Portugal e República Checa) e pertencentes à América Latina (Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica e México, exclusive o Brasil).
Com base nessas informações, chegou-se a um resultado que mostra a complexidade do sistema tributário brasileiro, com consequências negativas para toda a economia do país. O contencioso administrativo do Brasil, somente em nível federal, em 2018, foi de 16,4% do PIB, ante menos de 1% de mediana nos países da OCDE, conforme mostra o gráfico. As abreviaturas “Adm” e “Jud” indicam os percentuais que se referem ao Contencioso Administrativo e ao Contencioso Judicial, respectivamente. A linha continua negra destaca os dados do contencioso administrativo federal diretamente comparáveis com as medianas obtidas para os dois grupos de países analisados.
A comparação dos valores atualizados do contencioso brasileiro com os internacionais de 2013 em nada compromete a validade das conclusões, uma vez que se objetiva analisar o sistema tributário brasileiro sob uma ótica estrutural, e não conjuntural. Até porque, de acordo com dados da Receita Federal, em 2013, o valor do contencioso tributário administrativo federal já representava 13,9% do PIB daquele período, número já bastante superior à mediana internacional.
Esse contencioso brasileiro, equivalente a 73% do PIB, não surgiu aleatoriamente. Estudos sugerem haver relação entre o grau de litigiosidade tributária e o grau de insegurança jurídica, e deste com o grau de complexidade de um sistema.
Em termos de complexidade não faltam trabalhos para atestar a posição desfavorável do Brasil em relação ao resto do mundo, a começar pelo próprio dado de horas para pagar tributos, citado no início deste artigo. O Banco Mundial estima que uma empresa de médio porte brasileira gaste 1.501 horas por ano para cumprir suas obrigações tributárias, o que coloca o país em 184º lugar, entre 190 países, no critério “pagamento de tributos” do ranking Doing Business.
O contencioso administrativo do Brasil, apenas em nível federal, em 2018, foi de 16,4% do PIB
Esse resultado é reforçado por outro indicador global sobre complexidade, o Tax Complexity Index, elaborado pelas universidades alemãs LMU Munich e Universität Paderborn, segundo o qual Brasil é campeão de complexidade tributária, entre 100 jurisdições analisadas.
Os efeitos da complexidade tributária sobre a segurança jurídica são amplamente discutidos em estudo robusto, o Tax Certainty 2017, elaborado por OCDE e FMI a pedido dos líderes do G-20. Nele são apontadas as principais causas de insegurança tributária: 1- imprevisibilidade das políticas e leis tributárias, 2- imprevisibilidade na aplicação das regras tributárias, 3- incerteza quanto à resolução de litígios tributários, 4- incertezas decorrentes de novas tecnologias e modelos de negócios, 5- comportamento dos contribuintes e 6- ausência de adoção de padrões internacionais de tributação.
Os problemas do sistema tributário brasileiro não divergem desse diagnóstico. Segundo acórdão recente do TCU (acórdão 1105/19), que avaliou o ambiente tributário federal e diagnosticou motivos de sua complexidade, parte da disfuncionalidade do sistema tributário brasileiro está relacionada 1- à profusão de normas em matéria tributária esparsas (377 mil normas desde a promulgação de Constituição Federal), desrespeitando o Código Tributário, que obriga os entes a compilarem anualmente as normas vigentes, 2- às divergências de interpretação e instabilidade jurisprudencial, 3- baixa eficiência dos processos de consulta e 4- à demora no tempo de tramitação dos processos.
Adicione-se que o modelo tributário brasileiro é sui generis, especialmente no que se refere a tributação sobre o consumo, e acaba gerando complexidades peculiares, como a distinção entre mercadorias e serviços necessária para a definição da incidência do ICMS ou do ISS, situação anacrônica em uma economia cada vez mais digital.
As pesquisas realizadas pelos autores e que serão publicadas na íntegra em revista especializada, permitem concluir que o Brasil se destaca no contexto global pela existência de um contencioso tributário desproporcional. Esse contingente de litígios demanda o direcionamento de recursos para atividades não produtivas e amplia os custos de transação dos agentes econômicos, contribuindo para um crescimento econômico abaixo do seu potencial.
Com o presente levantamento, espera-se que fique demonstrada a urgência da agenda de reforma da tributação e a importância de que as mudanças a serem aprovadas estejam alinhadas com as recomendações internacionais. Quem sabe assim o Brasil consiga conquistar títulos mundiais mais promissores.
Lorreine Silva Messias é economista e mestre em Administração Pública.
Larissa Luzia Longo é pesquisadora do Centro de Cidadania Fiscal, pesquisadora do Insper e advogada.
Breno Ferreira Martins Vasconcelos é pesquisador do Insper e professor da FGV Direito SP, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados.