A autoregulação no mercado de capitais.
Por Marcelo Barbosa.
www.valor.com.br – 27/11/2018
Em seu relatório sobre objetivos e princípios da regulação do mercado de valores mobiliários (1998), a Organização Internacional das Comissões de Valores (Iosco, na sigla em inglês) reconheceu que a autoregulação representa um elemento de grande importância para a realização dos objetivos de políticas públicas constantes da agenda do regulador. Passados vinte anos, a experiência internacional, assim como a brasileira, apenas reforça as conclusões do citado relatório no sentido da consolidação da autorregulação.
E não poderia ser diferente. A autoregulação está presente na própria origem dos mercados de capitais, sendo nada mais do que uma manifestação natural do interesse das entidades de mercado em seu desenvolvimento sobre bases sólidas. A atuação do Estado surge posteriormente, com a constatação do interesse público existente, e da necessidade de existência de regulação e supervisão estatais, passando a autorregulação a funcionar como atividade complementar.
A ideia da autoregulação no atual mercado de capitais parte de duas premissas importantes. Em primeiro lugar, que a capacidade do regulador de exercer supervisão sobre o mercado é limitada. Os recursos humanos e tecnológicos disponíveis se revelam insuficientes para garantir uma supervisão apta a acompanhar o ritmo de expansão do mercado, ainda mais quando seus agentes se mostram mais preparados para se beneficiar rapidamente da inovação. Com o apoio da autoregulação, somam-se esforços e aumenta a eficácia da supervisão.
A segunda premissa é que regulador e entidades autoreguladoras compartilham um objetivo comum: o crescimento e a solidificação do mercado. O regulador tem por mandato legal a atuação na realização da importante política pública de captação de poupança para aplicação no mercado de capitais, sendo necessário para tanto assegurar a existência de regras e mecanismos de transparência e proteção de investidores. O autoregulador, por sua vez, é formado por agentes do mercado, e tem inegável interesse em sua higidez.
Diante do óbvio interesse público no bom funcionamento do mercado, cabe à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) manter os autoreguladores sob sua supervisão, ao passo que estes deverão exercer as atividades de autoregulação nos limites constantes das instruções editadas pela CVM e dos convênios correspondentes. No sistema jurídico brasileiro, isso é especialmente importante, de forma a não ameaçar a indelegabilidade de funções do órgão regulador. A atribuição não se delega porque é indelegável, e os convênios servem para delinear os termos em que se dá a cooperação entre regulador e autoregulador.
No âmbito do mercado de capitais, a atividade de autoregulação torna mais concretos os objetivos da própria regulação: preservar a integridade do mercado, reduzir o risco sistêmico e assegurar um regime adequado de proteção ao investidor.
As formas adotadas pela autoregulação variam de acordo com os regimes jurídicos e as características de cada mercado. Em mercados mais maduros, com instituições desenvolvidas, é possível encontrar diversos tipos de entidades desempenhando atividades de autoregulação, desde bolsas de valores até associações, e mesmo algumas entidades que atuam como autoreguladoras de forma conjunta.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a SEC (Securities and Exchange Commission, regulador americano do mercado de capitais) se beneficia da ampla atividade de autoregulação exercida pela Autoridade Reguladora da Indústria Financeira (Finra).
No caso brasileiro, a CVM mantém importante aproveitamento de atividades de autoregulação, com bons resultados. Os exemplos vão desde o credenciamento de analistas de valores mobiliários e agentes autônomos de investimentos, pela Associação dos Analisas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec) e Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras (Ancord), respectivamente, até a supervisão da atuação de agentes de mercado pela BSM, braço de autoregulação da B3, passando por cooperação no uso de infraestrutura tecnológica com a bolsa e revisão prévia de documentação de ofertas públicas pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
Em todos esses casos, a CVM mantém intacta sua competência, recorrendo aos entes privados tão somente como provedores de atividades complementares, com ganhos de eficiência e agilidade para a própria CVM. Nas atividades de credenciamento e de revisão de documentação de ofertas públicas, por exemplo, cabe à CVM deferir os pedidos e sem isso os processos não se dão por concluídos.
É com a possibilidade de apoio na atividade de autoregulação, portanto, que a CVM poderá ter o que Caio Tácito denominou “agilidade de adaptação às exigências mutáveis dos fenômenos financeiros e econômicos que leva necessariamente à ampliação do poder de editar normas”, uma característica essencial do regulador contemporâneo.
No cenário atual de expansão e sofisticação dos mercados, impulsionada pela inovação, a autoregulação continuará a ter papel importante. Para isso, será preciso adaptação aos desafios da interconectividade que vem provocando maior integração dos mercados globais e exigindo dos reguladores respostas adequadas.
O outro fenômeno importante alimentado pela inovação é a desintermediação, que igualmente demandará sérias reflexões de reguladores e autoreguladores.
Seja como for, os próximos passos do desenvolvimento do mercado serão dados com maior segurança dentro do modelo atual, em que o regulador estatal pode fazer uso da atividade de autoregulação.
Marcelo Barbosa é presidente da Comissão de Valores Mobiliários
E-mail: pte@cvm.gov.br
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